sábado, 4 de outubro de 2008

0573) Um caso para Salomão (19.1.2005)



Há um caso curioso entre os pequenos grandes dramas causados na Ásia pelo desastre do tsunami. (De passagem: Andei usando aqui “tsunami” no feminino, porque a imprensa em geral o tem feito. Mas fiquei sabendo que não há regra para isto, e que o feminino no caso é porque se toma a palavra como sinônimo de “onda”. Pela minha lógica, “tsunami” é sinônimo de maremoto, e acho que vou ficar usando no masculino) Num hospital do Sri Lanka, há um bebê não-identificado, com dois ou três meses, trazido logo após o maremoto. O bebê foi cuidado, e passa bem. Vi sua foto: um ferimento escuro bem no centro da testa, dois olhinhos negros e expectantes. Foi denominado de “Bebê 81”, número de ordem de sua entrada no hospital.

Acontece que existem, no dia em que escrevo estas linhas, nove mulheres que afirmam ser a mãe do bebê. Todas foram ao hospital, algumas acompanhadas do marido, e todas o reconheceram. O hospital não sabe o que fazer. Hospitais, muitas vezes, entregam um bebê assim à primeira pessoa que o reconhece e que apresenta alguma prova satisfatória. Mas esses casais perderam tudo: perderam casa, perderam documentos, perderam fotos, arquivos, objetos pessoais. Não há nada que possa identificar o bebê e comprovar seu vínculo com esta ou aquela mãe.

Eu penso logo é na saia-justa jurídica em que fica o Hospital, que por enquanto é o responsável pelo bebê. Cuidar dele, tudo bem; mas quando sarar, entregá-lo a quem? Ao Governo? A um orfanato? Mas por que a um orfanato, se a mãe dele está na sala de espera, debulhando-se em lágrimas, e explicando tudo às enfermeiras pela centésima vez? O problema é que de hora em hora é uma mãe diferente.

A Ciência de hoje, no entanto, já tem o teste de DNA, uma maneira indiscutível de saber quem são os pais biológicos do bebê. Mas aí vem outro problema: saber a verdade custa uma nota preta. Seria preciso colher material genético do bebê e dos nove casais que o reivindicam, enviar para Londres... A Ciência pode dar uma resposta definitiva, mas esta resposta custa centenas de dólares. O admirável mundo novo dos laboratórios genéticos pode decidir se o pagodeiro Fulano ou o centroavante Sicrano é ou não é o pai da criança daquela modelo-e-atriz; mas não resolve o drama do Bebê 81, cuja multidão de supostos pais não têm um tostão furado.

Fico matutando sobre uma última coisa nesta história: o poder cruel da esperança. Aqui não se trata, como na famosa história sobre o Rei Salomão, de duas mulheres disputando um filho. São nove, e oito delas estão iludidas (quem sabe todas nove estão). Nada, no entanto, as faz arredar pé do Hospital. Quando olham umas para as outras, todas se sentem no direito de imaginar: “Eu estou certa, elas estão erradas”. Mas se o Hospital colocar todas numa sala, eu vou sentir pairando no ambiente, de forma muito mais palpável, aqueles oito bebês que sumiram para sempre, mas estão mais presentes ali do que o Bebê 81.

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