sábado, 4 de outubro de 2008

0569) Pulp fiction e melodrama (14.1.2005)




Uma coisa que pessoalmente me irrita na literatura popular é o que poderíamos chamar de exagero emocionalista. Em literatura assim, tem-se a impressão de que os personagens são uns transtornados. A todo instante os olhos de alguém “fuzilam de ódio”, Fulano está “espumando de fúria”... Parece que não basta ao autor dizer que o cara se aborreceu: é preciso dizer que “todo seu corpo foi tomado por um tremor incontrolável de raiva, enquanto que chispas de fogo pareciam saltar de seus olhos azuis.”

É uma herança dos melodramas românticos de fins do século 18, entrando pelo 19. Nos livros daquela época, era um exagero bem-vindo, uma libertação da imensa racionalidade e frieza da literatura européia que os precedera. Hoje, é mero truque narrativo para poupar tempo e esforço mental tanto a quem escreve quanto a quem lê. Os personagens “explodem”, “vociferam”, “são tomados de uma incontrolável agitação”, “enfurecem-se”, “soltam gargalhadas sardônicas”, “prorrompem em pranto convulsivo”. Como as situações, por si sós, são pobres em dramaticidade (porque inverossímeis, ou mal concebidas) é preciso carregar na linguagem para impressionar os leitores mais impressionáveis.

Crises de terror ou ataques de paixão fulminante acontecem como um raio que cai do céu. Acabei de ler um interessante livro de terror (A escolha dos três, de Stephen King) onde um sujeito conhece uma mulher negra, com as duas pernas amputadas, que anda em cadeira de rodas e ainda por cima é esquizofrênica (tem dupla personalidade), e se apaixona por ela antes mesmo da gente virar a página. Impressionante. Só acreditei porque o autor estava dizendo.

Quem usa cacoetes deste tipo precisa ser muito competente em outros aspectos da escrita. No caso de King, por exemplo, o que me atrai não são seus personagens, mas os intrincados mundos fantásticos que ele é capaz de conceber, como na série A Torre Negra, a que pertence o livro acima. (Ver “Tolkien no Far-West do Futuro”, 6 de junho) King é um escritor desigual: O Iluminado, por exemplo, é muito bem escrito, e tem um personagem principal complexo e fascinante. Quando isto não acontece, o que torna seus livros merecedores de atenção é sua habilidade de conceber situações e ambientes extraordinários, no melhor estilo da pulp fiction.

Faço este balanço porque vivo dividido entre dois mundos. Num, o que vale é a história, e o estilo literário não passa de “frescura de intelectual”. No outro, o estilo é tudo, e o resto são “concessões ao mau-gosto dos iletrados”. Tristes mundos estes nossos! Mal sabem uns e outros que alguns dos melhores estilistas da literatura americana de hoje surgiram no interior da ficção científica: John Crowley, Gene Wolfe, Ursula LeGuin, William Gibson... O grande escritor, hoje, é capaz de lançar mão do universo incrivelmente rico e complexo da literatura popular, e tratá-lo em linguagem de gente grande.

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