sexta-feira, 15 de agosto de 2008

0512) É pra ontem! (9.11.2004)



Virou moda, a partir de uma certa época neste país. Alguém lhe encomenda um trabalho, você pergunta “para quando é”, e o sujeito diz, eufórico: “É pra ontem!” É engraçado, mas quem diz isso sempre diz com um ar de alegria, de satisfação. Certamente porque não sabe da injeção de ácidos corrosivos que está desencadeando no organismo de quem tem o hábito de fazer as coisas bem-feitas. Durante algum tempo usei uma resposta pronta: “Se é pra ontem, então já entreguei. Cadê minha grana, que é pra hoje?” Mas não adianta. Quem utiliza aquela pérola verbal são em geral pessoas para quem as coisas têm de ser feitas o mais rapidamente possível para que elas possam riscá-las de sua lista de tarefas. Se vão ficar bem-feitas ou não, é problema do cara que as está fazendo, e não delas, a quem cabe apenas pressionar para que sejam feitas.

Já virei a noite para entregar um texto às 8 da manhã, somente para descobrir depois que esse texto, cheio de imperfeições ou de dados que não tive tempo de conferir, dormiu placidamente durante uma semana sobre a mesa do contratante, que na verdade nem tinha tanta pressa assim. Queria apenas ter a certeza de que quando o patrão dissesse: “E o texto de apresentação, já mandou fazer?” ele estendesse as folhas: “Já está pronto!”, ganhando com isso um erguer aprovativo da sobrancelha, e quem sabe alguns pontos rumo a uma promoção futura.

O perfeccionismo, como tudo no mundo, pode ser tanto uma qualidade quanto um defeito. E só é útil, como tudo no mundo, se for temperado pelo bom senso. O cara deve saber quando está burilando demais, e deve saber quando de fato precisa de mais um dia. Prazo de entrega é um dos maiores incentivos à criação artística em todos os tempos. Se não existissem prazos de entrega, Michelangelo estaria retocando a Capela Sistina até hoje. Quando um Artista (ou um Profissional, que não é menos importante que um Artista) está focalizado, sabe o que quer, está com todas as luzes da mente acesas, o prazo de entrega é uma adrenalina a mais. É conhecida dos leitores de rock a história sobre Bob Dylan durante a gravação de “Blonde on Blonde”, indo para o estúdio no banco traseiro do carro, de caderneta em punho, finalizando quatro canções ao mesmo tempo.

Tudo pode ser melhorado, mas chega um momento em que tudo tem que ser finalizado e entregue. Borges dizia: “Publicamos um livro para poder parar de mexer nele.” O primeiro texto produzido tem que ter um piso-mínimo de qualidade; tem que ser publicável, mostrável, satisfatório. Se der para melhorar, melhor. Depois de uma certa época, comecei a encarar de forma positiva o “é pra ontem”. Digo para mim mesmo: “É uma fórmula mágica que me dispensa da perfeição.” Se fosse pra amanhã (penso), eu entregaria uma obra-prima. Mas é pra ontem? Pois era assim que eu escrevia ontem. Melhor do que isto, só se me der mais uma semana de prazo. E se me pagar o dobro.

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