(João Grilo, xilogravura de Stênio)
Dizem que o personagem título de Alphonse Daudet em seu livro Tartarin de Tarascon é uma tentativa de fundir num só personagem os tipos famosos de Dom Quixote e Sancho Pança. Uma das melhores coisas da literatura (da arte) é a nossa possibilidade de usar idéias alheias como se fossem nossas. Para evitar toda essa chateação em torno da idéia de plágio, o primeiro conselho que dou aos escritores é: quando se apossarem de um personagem alheio, a primeira coisa a fazer é mudar seu nome e sua descrição física. Se ficarmos presos ao original, nunca nos afastaremos dele. A tentativa de Daudet foi ousada, porque Tartarin tem ao mesmo tempo a capacidade de fantasiar de Dom Quixote e o espírito terra-a-terra de Sancho.
É sabido que Conan Doyle criou Sherlock Holmes inspirado em seu professor Joseph Bell, mas o antecedente literário de Sherlock, como o próprio Doyle, reconhecia, era o detetive C. Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe em uns poucos contos memoráveis que deram início à novela de detetive como a conhecemos hoje. Doyle apropriou-se de uma porção de métodos dedutivos de Dupin, e do truque de apresentá-lo através dos olhos de um narrador que só tem acesso parcial aos seus processos mentais, o que garante uma fonte permanente de surpresa para si e para o leitor.
Curioso também é, no caso da literatura popular, a exploração dos heróis picarescos. Ao que me consta, Pedro Malazarte é o mais antigo deles, sendo conhecido na Península Ibérica como “Pedro Urdemalas” e outros nomes. Por um lado ele se aparenta ao tradicional Lazarillo de Tormes, o guia de cego que luta para sobreviver no meio da miséria e da violência, sendo forçado a tornar-se esperto, trapaceiro e por vezes cruel. Por outro lado, ele se relaciona com personagens da Commedia dell´Arte européia, como o Arlequim: espertalhão, cheio de espírito lúdico.
Malazarte é o típico herói pregador-de-peças, cujas vítimas tanto podem ser os ladrões e bandidos como os burgueses ricos e as autoridades. E deve ser sido ele o modelo em que se inspiraram tantos outros heróis picarescos do cordel: o João Grilo usado por João Martins de Athayde nos folhetos e por Ariano Suassuna no teatro, o Cancão de Fogo dos folhetos de Leandro Gomes de Barros, o Sabido Sem Estudo de Manoel Camilo dos Santos e outros. Cada um deles é uma espécie de reencarnação dos anteriores, mas, ao dar-lhe um novo nome, o autor meio que se apropria dessas características universais, e sente-se à vontade para modificar o personagem de acordo com sua conveniência. A literatura popular recicla a si mesma, tanto quanto a indústria cultural (cinema, quadrinhos, TV). A diferença é que uma o faz de maneira pessoal e intuitiva, e a outra através de mecanismos de pesquisa de mercado, estatística e marketing. A indústria cultural profissionalizou e sofisticou (do ponto de vista técnico) um processo criativo artesanal. Novas usinas engolindo velhos engenhos.
O texto de Bráulio Tavares, como sempre, é primoroso. Cabe, porém, uma ressalva: o autor de Proezas de João Grilo não é João Martins de Athayde, mas João Ferreira de Lima. Athayde era tão-somente o "editor-proprietário", mas tinha por habito pôr seu nome em obras alheias, sendo a sua maior "vítima" o próprio Leandro Gomes de Barros, citado no texto supra.
ResponderExcluirARIEVALDO VIANA disse:
ResponderExcluirRealmente, JOÃO FERREIRA DE LIMA é autor de um folheto de oito páginas intitulado "AS PALHAÇADAS DE JOÃO GRILO", escrito em sextilhas. O poeta DELARME MONTEIRO informou ao pesquisador Liêdo Maranhão de Sousa que, a pedido do editor JOÃO MARTINS DE ATHAYDE teria ampliado esse texto para 32 páginas. Realmente, até a página 8 João Grilo é um personagem travesso que apronta uma série de presepadas com o vaqueiro, o padre e o português da égua carregada de ovos. A partir da página 9, o texto sai da sextilha para SETILHA e o João Grilo começa a se tornar sábio e metido a filósofo. Leiam o folheto com atenção e verão a diferença de estilo entre os dois autores.
Marco e Arievaldo: Super-obrigado pela contribuições de ambos. Atribuí o folheto a Athayde porque é assim que ele aparece na minha fonte, a "Literatura Popular em Verso - Antologia" da Casa de Rui Barbosa. Mas sempre achei esse folheto um texto híbrido. Sem me arriscar a discutir a autoria, comentei esse aspecto dele em meu livro "ABC de Ariano Suassuna", no capítulo "J - João Grilo". Acho muito possível que o folheto tenha mão de Athayde, Delarme, João Ferreira e até de mais gente. Se brincar, até de Ariano... :-)
ResponderExcluirGostaríamos de saber quem é o verdadeiro autor de "As proezas de João Grilo".Seu blog contribuiu muito para nossa pesquisa de monografia, pois o tema de nosso TCC é: OS PROCEDIMENTOS TÉCNICOS TRADUTÓRIOS NA VERSÃO DO GÊNERO TEXTUAL DA LITERATURA DE CORDEL:
ResponderExcluir“AS PROEZAS DE JOÃO GRILO”
DE JOÃO FERREIRA DE LIMA.Mas,temos dificuldades em encontrar o verdadeiro folheto contendo as 32 páginas do qual você citou.Encontramos vários folhetos,no entanto,nenhum completo.Se você pudesse nos ajudar,enviando este folheto de 32 páginas,ficaríamos muito agradecidas.Aguardamos sua resposta.
Francys Tavares e Mackelly Araújo, acadêmicas do Instituto de Ensino Superior do Amapá-IESAP.