domingo, 3 de agosto de 2008

0487) O dentista e a tortura (10.10.2004)



(cartum de MOA)




Houve um tempo em que eu tinha medo de dentista. Na infância e na adolescência, dei muito trabalho a Dr. Queiroga, Dr. Bandeira e “Meu Bom”. Depois de adulto, reconciliei-me com este aspecto meio masoquista da condição humana através dos conselhos sensatos e da persistência de Pedro Hamilton. Depois que vim morar no Rio, coube a Mônica Blumer fazer com minha dentadura o que Ezra Pound fez com a primeira versão de “The Waste Land” de Eliot: jogar fora o que não prestava, e deixar mais apresentável o restante. Hoje em dia vou à dentista com a mesma tranqüilidade com que vou ao barbeiro.

As pinças martirizam? A broca zune? A agulha magoa? Não importa: fico ali, todo herói, todo mártir, amarrotando entre os dedos o lencinho de papel, os olhos cravados no teto, fazendo de conta que não é comigo. Desenvolvi uma técnica meio Zen de me isolar das sensações corporais, as quais continuam presentes, mas meio distantes, como um barulho ouvido embaixo dágua. Li anos atrás um depoimento de um preso político que descrevia algo de semelhante que se passava em sua mente nas horas da tortura.

Comparar uma sessão de dentista a uma sessão de tortura é até covardia. Mas quando nos entregamos, voluntariamente indefesos, àquela invasão mecanizada de nossos recessos mais íntimos, precisamos da certeza de que tudo aquilo está sendo feito para o nosso bem. E é com essa fé que me apego: a fé na Ciência, que para os indivíduos da minha estirpe chega a tornar desnecessária a fé em qualquer outra coisa. Vai daí que, enquanto estou estirado naquela cadeira, obrigo-me a sentir uma exultação íntima com tudo que me acontece. “Ainda bem!”, penso eu. “Este sofrimento todo é para acabar com as coisas ruins que iam acontecer! Esta dorzinha chata é para evitar que eu sinta de novo o traspassar lancinante da Pontada, que uma vez, aos quinze anos, me derrubou ao chão, sem mais nem menos, quando eu descia numa tarde chuvosa a rua Getúlio Vargas, perto do Cine Avenida!...”

E o zunido aterrador da broca vira trilha sonora de um desenho-animado imaginário em que eu a vejo desmoronando enormes paredes de tártaro corrosivo, fustigando agregados de bactérias até desmontá-los por completo e precipitá-los nos turbilhões da saliva (“pode cuspir...”), esboroando trechos comprometidos pela cárie que nos minutos seguintes serão substituídos por um esmalte feito em laboratório, mais rijo, que talvez não dure para sempre mas que decerto me sobreviverá. Alternam-se minúsculas britadeiras e jatos dágua gelada, enquanto vejo com o olho da mente as placas de micro-organismos sendo fustigadas, varridas, até se diluírem em despojos microscópicos; vejo o dente original emergindo branco e puro como um seio de Vênus feito em mármore de Carrara; vejo o império da limpeza e da saúde me restituindo a paz do corpo e do espírito. Estou sofrendo; mas é pro meu bem. Eita que bom, achei pelo menos um departamento, na vida, onde essa frase se aplica.

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