sexta-feira, 1 de agosto de 2008

0483) O jipe abandonado (6.10.2004)



Sempre que me detenho a pensar sobre os mistérios do funcionamento da mente humana (ou seja, umas dez vezes por dia) me vêm à mente dois extremos. Um deles é a denúncia desesperada de Raul Seixas, de que só usamos dez por cento de nossa cabeça animal. Coitado de Raul, que danou-se a tomar tudo quanto lhe aparecia pela frente, pensando que estava a desbravar os noventa por cento restantes, mas estava de fato era bombardeando os dez que tinha. O outro extremo é o otimismo sem limites de Colin Wilson, cujos personagens lêem um livro do filósofo Husserl e ganham um tal nível de consciência dos próprios poderes que são capazes de fazer a Lua girar usando a força mental (não, não estou exagerando, leiam Parasitas da Mente).

O que me vem à lembrança nessas horas é um episódio que li certa vez numa revista. Um grupo de antropólogos estava estudando uma tribo africana. Depois de encerrados os estudos (ou talvez, mais realistamente, depois de consumida a verba do Governo), voltaram para casa e deixaram nas proximidades da tribo um jipe velho que não valia a pena trazer de volta. Mal os cientistas partiram, a tribo apossou-se festivamente do veículo, que para eles era um símbolo dos poderes mágicos do homem branco.

Acostumados a ver o jipe indo e voltando, os índios fizeram de tudo para pô-lo em funcionamento, tentando repetir os gestos que tinham visto os brancos fazendo. Sem sucesso, claro; o motor estava batido, o tanque vazio. Depois de muito tentarem, um pajé mais prático sugeriu puxarem o jipe com uma junta de bois, o que foi feito. Daí em diante, em todas as ocasiões festivas o cacique, o pajé e seus assessores se empoleiravam no jipe, e a junta de bois dava dez voltas com ele em torno das cabanas, sob os aplausos da tribo inteira.

Tudo muito bem, mas eles sabiam que faltava alguma coisa. O jipe estava muito pesado e exigia muito dos bois, porque, misteriosamente, as rodas estavam emperradas, e se recusavam a girar como faziam antes. Vai daí que um belo dia, quando o passeio festivo estava se cumprindo, um índio mais curioso começou a mexer na alavanca do freio-de-mão, e de repente – Shazam! Abracadabra! As rodas foram liberadas, giraram com facilidade, o jipe ficou levíssimo e veloz. O descobridor deve ter sido promovido a cacique, ou no mínimo a Ministro Chefe da Casa Civil. E daí em diante o jipe não parou mais de circular.

Pois é assim nossa relação com a mente. De vez em quando descobrimos algo que parece, por fim, nos dar acesso a todas as suas possibilidades. Não importa o quê: hipnotismo, meditação, LSD, implantes cibernéticos, Método Silva de Controle Mental, cientologia, Prozac, não importa. Acreditamos ter finalmente transposto o umbral das portas da percepção, acreditamos ter-nos tornado, por fim, iguais aos deuses. Mas estamos tão iludidos quanto os nossos aborígines rebocando um jipe que nunca vai funcionar direito.

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