Cronópios e famas são criações do escritor Julio Cortazar, um irônico e compassivo observador da natureza humana, ao qual não passou despercebida a existência destes dois tipos tão universais. Nos textos curtíssimos que aparecem em Histórias de Cronópios e de Famas (com várias edições no Brasil), ele supõe serem reais estas criaturas, cuja intenção alegórica, todavia, salta aos olhos.
A maneira mais curta (e mais limitada) de explicar quem são é a que eu usava na década de 1970, quando os amigos perguntavam a razão do meu entusiasmo por esse pequeno livro. “São os malucos e os caretas”, dizia eu. Era a linguagem da época, o crivo seletivo da época, a polarização da época entre os modernos, os livres, os avançados (nós) e os que estavam presos a parâmetros limitados e repressores.
Os cronópios são avoados, lúdicos, sentimentais, infantis. Diante dos objetos mais comuns ou das situações mais corriqueiras, têm atitudes inesperadas e criativas. Nas suas mãos qualquer objeto bobo se transforma em algo surpreendente. Cenas tipicamente cronopianas, por exemplo, são o balé dos pãezinhos e o almoço da bota de Chaplin em Em busca do ouro. Os famas são metódicos, planejadores, cheios de regras para tudo: quando viajam, informam-se antecipadamente sobre o preço das diárias do hotel e a cor dos tapetes; fazem listas de tudo que levam na bagagem, anotam os médicos de plantão na cidade. Os famas são (para usar outra imagem do próprio Cortázar) aquelas pessoas que só escrevem em papel pautado, e que só apertam o tubo de pasta de dentes a partir da extremidade.
Ninguém tem muita dúvida sobre de que lado está o coração de Cortázar; aliás, ele deu a um ensaio seu sobre Louis Armstrong o título “Louis, enormíssimo cronópio”. Os cronópios parecem ouvir jazz, e os famas, marchas militares. Impossível não simpatizar com essas criaturas, cuja origem o autor assim descreve: “Eu estava num teatro nos Champs Elysées, e vi flutuar uns objetos cuja cor era verde, como se fossem pequenos balões, balõezinhos verdes que se moviam ao meu redor...” Os cronópios já são, nesse vislumbre inicial do escritor, uma espécie de criaturinhas de desenho animado vivendo no mundo real, no qual desencadeiam um caos benigno com sua simples presença, sua propensão à brincadeira, sua distração...
Aos 25 anos, eu me considerava um enormíssimo cronópio; é engraçado perceber que se nessa época eu encontrasse o sujeito que sou hoje, talvez o considerasse um típico fama – a começar por esta capacidade de escrever todo dia uma coluna com o limite de 3 mil toques. Paciência. Cortázar diz que “a primeira coisa que faz um cronópio recém-nascido é insultar grosseiramente seu pai, no qual vê obscuramente a acumulação de desditas que um dia serão suas”. São cruéis, são ingratos os cronópios? Não. Todo cronópio é filho de um casal de famas, e em fama um dia há de se tornar. Daí sua vontade de beber a beleza do mundo... antes que seja tarde demais.
Muito interessante. Não conhecia os termos "cronópio" e "fama". Na minha análise, muitas pessoas (e aí me incluo) se situam na verdade em um meio termo entre os arquétipos. Infelizmente, acho que estou mais para fama, dado meu nível de organização. Mas tenho um pedaço de minha alma totalmente cronópio. ^^
ResponderExcluirE ainda há as esperanças!
ResponderExcluirGosto tanto desse livro que ele me acompanha em viagens,algumas idas idas ao cinema ou várias outras oportunidades, só para me fazer companhia. E deve ser o presente mais batido que meus amigos recebem, porque quase sempre eu cismo de mostrar a alguém "um livro maravilhoso, tenho certeza que você vai gostar".
Ótimo texto.