terça-feira, 27 de maio de 2008

0405) Os bandidos regenerados (7.7.2004)




("Tiradentes esquartejado" de Pedro Américo)

D. João VI ficaria muito surpreso se pegasse uma máquina do tempo, visitasse o século 21, e descobrisse que o Brasil está cheio de estátuas em homenagem a Tiradentes, e nenhuma em homenagem a ele (se existir me avisem, porque desconheço). Pensaria o bom soberano: “Varei! O sujeito é imperador e não ganha uma estátua; quem ganha estátua são os marginais, os subversivos”. Teria razão em pensar assim. A Roda da História é como a Roda da Fortuna do Tarot, onde há sempre alguém subindo e alguém descendo, de acordo com o ir e vir das marés da política. O herói de hoje é o tirano de amanhã, e vice- versa. Tiradentes foi esquartejado, e teve seus despojos pregados ao longo das estradas de Minas para servir de advertência. Esse corpo despedaçado aparece hoje simbolicamente restaurado: refundido em chumbo, recomposto em mármore.

O mesmo vale para Lampião, que ainda hoje desperta no Nordeste reações extremadas de veneração e ódio. O mito de Lampião encarna virtudes de que o nordestino se envaidece: coragem, obstinação, esperteza, brabeza de macho, etc. Depois que o indivíduo é reduzido a pó e história, o Mito se limpa de suas imperfeições humanas, e se cristaliza muitas vezes como um conjunto de qualidades que talvez surpreendesse até o próprio objeto desse culto.

As estátuas de Tiradentes são hoje uma unanimidade no Brasil: ninguém questiona seu merecimento. Se alguém decidisse erigir uma estátua a Carlos Lamarca ou a Marighella, terroristas mortos pela ditadura militar, certamente haveria protestos aqui e acolá, mas sem dúvida grande parte da imprensa (e do Congresso Nacional) seria a favor. Depois que a ditadura se desmanchou em sua própria incompetência e corrupção, a opinião pública ficou liberada para achar que esses indivíduos não são criminosos, são heróis. Talvez heróis que tenham escolhido uma linha equivocada de ação política, mas heróis pela coragem de lutar uma luta desigual e suicida.

Fico me perguntando que caminhos percorrerá a evolução da consciência social brasileira. Quem serão os heróis do nosso tempo que merecerão estátuas em praça pública, nome nas praças, efígie em selos ou moedas? Claro que certos figurões (Brizola, Lula, Fernando Henrique, etc.) têm grandes chances de ganhar homenagens assim. Mas, quem serão as zebras? Quem serão os bandidos regenerados do futuro, quem serão os ex-marginais a terem sua imagem redimida? Não creio que gangsters como Fernandinho Beira-Mar ou Escadinha venham a ganhar tais honrarias, mas lembrem-se, tem gente que defende uma estátua para Lampião, que as elites brasileiras viam com os mesmos olhos com que vêem hoje os alcapones do tráfico. Os caminhos da História são surpreendentes. Ah, eu trocaria 24 horas de minha vida atual pela chance de viver essas 24 horas no ano 2104, andar pelas praças, olhar os mapas de nossas cidades, recensear as homenagens, e refletir um pouco sobre as crueldades e as ironias que o futuro nos reserva.


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