sábado, 3 de maio de 2008

0384) Olhos que dizem tudo (12.6.2004)




(Cacilda Becker)

O ator de cinema tem um instrumento de que o ator de teatro só dispõe em ocasiões especiais. Esse instrumento é o olhar.

Não que no palco o olhar do ator seja imperceptível ou irrelevante. Mas o cinema tem a possibilidade de, com um close, botar diante de nós um rosto com não sei quantos metros de altura, um rosto que parece estar a centímetros do nosso. Essa falsa proximidade e essa impressão de intimidade mental proporcionam ao diretor e ao ator um belo dum instrumento.

Diz-se que há cem anos, no começo do cinema, os espectadores estranharam muito os primeiros closes que surgiram na tela. Os jornais comentavam: “O filme é cheio de absurdos: um casal está conversando numa sala e de repente aparece a cabeça decapitada de um gigante, sem nenhuma explicação.”



Um close clássico do cinema é o da cena final do filme A Rainha Cristina, com Greta Garbo. A rainha sueca se apaixona pelo embaixador espanhol e, devido à rejeição política a este casamento, decide abdicar do trono e ir embora com o espanhol. Depois que renuncia, vai esperá-lo no navio que os levará embora da Suécia, e ali recebe a notícia de que ele acaba de ser morto num duelo. Sem o amante, sem o trono, ela ordena que o navio parta, vai para a proa e fica olhando o oceano.

É um dos planos mais belos do cinema, porque a fisionomia de Garbo é inescrutável: vemos o seu rosto, imaginamos o que ela pode estar sentindo ou pensando num momento como aquele, mas ela própria não nos dá nenhuma pista. A expressividade da atriz, num momento assim, está justamente em nada dizer, nada indicar, e em permitir diferentes leituras ao espectador.



Outro primeiro plano com muitas perguntas e poucas respostas é o de Mia Farrow em O Bebê de Rosemary. Rosemary é uma moça novaiorquina que vai morar no apartamento vizinho ao de uma seita de satanistas, os quais querem escolher uma mãe para conceber o Anticristo. É possuída (literalmente) pelo demônio, e o filme narra o pesadelo por que ela passa durante toda a gravidez. Quando o bebê nasce, ela é admitida no quarto.

O último plano do filme é de Rosemary sentada ao lado de um berço todo forrado de panos negros, olhando para o bebê que está lá dentro. Não vemos o bebê, que supomos monstruoso: a câmara mostra apenas ela, e seu olhar cheio de resignação, ternura, aceitação. Ou pelo menos é o que vejo ali; outras pessoas verão outros sentimentos.



Não há também quem esqueça a cena final da La Strada de Fellini, quando Zampanò (Anthony Quinn) fica sabendo da morte de Gelsomina. Ele, que a tratara com brutalidade a vida inteira, percebe agora que a amava. Ele deixa-se cair na areia da praia, a câmara vem sobre seu rosto. Zampanò chora, ruge, grita como um bicho bruto; ergue os olhos para o céu, como se pela primeira vez percebesse sua existência. Sem uma palavra, o ator regurgita um tumulto de sentimentos que podemos ler em cada ruga, em cada contração de seu rosto.









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