terça-feira, 1 de abril de 2008

0341) Tradição e vanguarda (23.4.2004)




O cinema de Jean-Luc Godard é um exemplo de como Vanguarda e Tradição não são forças antagônicas, e sim complementares. Vou comparar com o futebol: a Tradição é a defesa, aquele conjunto de caras a quem cabe segurar-o-resultado, defender o que foi conquistado até então. E a Vanguarda é o ataque, aqueles caras cuja função é tomar a iniciativa do jogo, abrir terrenos, conquistar novas vantagens. Não prolongarei demais esta metáfora, para que ela não comece a perder o sentido, mas lembro apenas que, assim como no futebol perdoamos dezenas de erros dos atacantes desde que eles consigam fazer 2 ou 3 gols, também na Vanguarda perdoamos milhares de bobagens, desde que aqui e acolá se descubra alguma coisa realmente importante para a Arte.

Foi relançado há pouco Uma mulher é uma mulher, filme que Jean-Luc Godard realizou em 1962, depois de sua estréia em Acossado (1959) e de O pequeno soldado, que ficou preso na censura durante alguns anos. Uma mulher... é uma homenagem ao musical americano, mas é, muito godardianamente, um anti-musical. Neste filme Godard faz experiências sonoras que desenvolveria depois (Made in USA, Alphaville, etc.): um longo silêncio cortado por rajadas bruscas de música estridente, que logo desaparece; uso de música-de-fundo em aparente desacordo com a cena; e muita música direta, ou seja, música que os próprios atores estão ouvindo na vitrola ou no rádio.

O cinema de Godard, que ficou sendo o protótipo do cinema de Vanguarda dos anos 1960, é em grande parte responsável pela onda metalinguística e referencial que tomou conta dessa época. Godard cita o tempo todo. Cita filmes, canções, livros, peças, personagens históricos, filósofos, políticos. A todo instante alguém está se referindo a alguém. Seu cinema é “cinema pop” no sentido de utilizar nomes próprios como matéria-prima, como se fossem griffes ou marcas. Além dessa citações verbais, seus filmes são repletos de citações visuais e sonoras, principalmente ao cinema americano clássico, ou seja, a uma Tradição que existia mas não era levada em conta pelos que vinham fazendo cinema na França até então.

Quem cita está pedindo a bênção à Tradição; e por mais que isto possa se transformar num cacoete irritante, este estilo referencial de arte cria laços entre as obras e os artistas, dá espessura e solidez ao tecido cultural. A Nouvelle Vague francesa entrou em choque com uma Tradição (a do cinema industrial e conservador, tanto da França quanto dos EUA) mas trouxe à luz outra Tradição, a dos autores individualistas que conseguiam criar um cinema próprio dentro dessa mentalidade padronizada: Hitchcock, Samuel Fuller, Jerry Lewis, John Ford, etc. Mais do que “zerar tudo”, o cinema vanguardista de Godard propõe que vejamos com olhos novos o que foi feito antes, que tentemos fazer uma revisão no cascalho da História, porque certamente existem pepitas de ouro que passaram despercebidas. Que homenagem melhor à Tradição?

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