sexta-feira, 7 de março de 2008

048) Literatura e perversão (17.5.2003)


(René Magritte, "The Rape")

Vou logo avisando que emprego as expressões “pornografia” e “perversão sexual” sem a menor intenção moralista. Considero a literatura pornográfica um gênero literário tão válido quanto qualquer outro, e as perversões, bem, são os 90% de exceções que aparecem em nossa vida sexual.

Existem leitores inveterados de “westerns” que querem apenas acompanhar o bangue-bangue dos caubóis, e reclamam se o livro lhes oferecer digressões historiográficas e aprofundamento psicológico. Idem com leitores de romances detetivescos: muitos autores policiais desaconselham que preocupações estilísticas afastem o livro da sua função principal, que é o quebra-cabeças de “Quem é o criminoso?”. O mesmo se dá com a ficção científica, onde muitos críticos também desaconselham extrapolações “literárias”, devendo a narrativa se concentrar nos aspectos “ficcientíficos” da história.

Acho estas atitudes muito parecidas com a atitude do leitor de pornografia, que quer ver apenas a descrição gráfica de atos sexuais, e se impacienta com qualquer coisa que se afaste disso. Esta reação é muito clara nos cinemas que passam filme pornô. Quando aparece um diálogo ou uma cena “normal” que dure cinco ou dez minutos, o pessoal começa a bater com os pés: “Bora, rapaz! Vim ver serviço!”

Um escritor que se concentra num único aspecto da história age como um pervertido obsessivo, que se concentra num único aspecto do sexo. Fetichismo, pedolatria, sadismo, voyeurismo, são perversões que fazem parte, “en passant”, da atividade sexual da maioria das pessoas. Só se tornam problema quando exigem exclusividade e censuram o resto. Quando o voyeur só consegue sentir prazer através do voyeurismo, toda a variedade possível do ato erótico fica proscrita pela ditadura de um único impulso. A sexualidade inteira é insuficiente para dar-lhe prazer, para despertar seu interesse. Ele só pensa “naquilo”, e deixa de aproveitar todo o restante. Tem-se a impressão de que diante de tudo o mais ele dirá: “Chega, não me interessa, nada disso me interessa – vamos à única coisa que realmente importa.”

Esta é uma atitude muito parecida com a do leitor aficionado que se recusa a absorver qualquer mistura de experiências, e exige que a literatura se concentre numa área de convenções muito específicas e muito limitadas. Assim como o consumidor de pornografia, ele quer ver apenas uma coisa, e recusa o que considera encheções de lingüiça.

“Pornografia” para mim é qualquer tipo de literatura que se concentre obsessivamente numa única atitude mental e proíba a si própria a abertura para tudo que faz parte da vida, da nossa mente, do mundo inteiro. Existe, assim, uma pornografia política: os romances engajados, geralmente de esquerda; uma pornografia amorosa – esses romances-para-moças, que falam só de amor, amor, amor... Pornografia é qualquer literatura que abre mão de ser literatura e “só pensa naquilo”, seja “aquilo” o que fôr.

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