sexta-feira, 7 de março de 2008

0068) O gueto (10.6.2003)



Dizem que a Internet promove a integração entre diferentes culturas, põe em contato idéias diferentes, reduz o provincianismo. Pode até ser. Mas a reboque disto vem outra tendência, que eu chamo “A Consagração dos Guetos”. Nunca foi tão fácil descobrir pessoas que se interessam, como nós, por algo bem específico, fazer contato, juntar-nos a elas, e passar 24 horas por dia, 7 dias por semana, dedicando-nos única e exclusivamente àquela mania, ou crença, ou moda, ou hobby, ou ideologia, ou seja lá o que fôr.

Suponhamos que você admira os Templários, os cavaleiros medievais de quem se diz que guardaram os maiores segredos da Cristandade, até serem exterminados pelos reis da Europa. Décadas atrás, você ia às bibliotecas, lia alguns livros, perguntava à bibliotecária se alguém mais pedia para ler aquelas coisas, tentava fazer contato... Se o jornal anunciava uma palestra sobre o assunto, você ia até o fim do mundo, debaixo de chuva, só pela esperança de encontrar algum outro maluco dis posto a conversar sobre Templários a noite inteira. Hoje em dia, você entra num mecanismo de busca, e dentro de segundos tem ao alcance de um clique dezenas de saites e centenas de endereços pessoais de especialistas no assunto (além de mais texto do que você conseguirá ler no tempo de vida que lhe resta).

Seu interesse é um grupo musical obscuro, como a Nitty Gritty Dirt Band? São os romances absurdistas de Campos de Carvalho? É um tipo de cinema que não existe mais, como os filmes de terror da Hammer? São as operetas musicais de Gilbert & Sullivan? É o estudo dos répteis e anfíbios? É o sadomasoquismo heterossexual? São as teorias de Gurdjieff e Ouspensky? É a história e as glórias do Treze Futebol Clube? Não importa o que seja, e onde você more: você tem ao alcance de um clique um batalhão de pessoas tão entusiasmadas quanto você, e que saudarão com vivas e foguetões o seu aparecimento: “Obááá! Descobrimos mais um!”

Os guetos nunca floresceram tanto quanto nesta época de globalização cultural. A Rede, que parecia destinada a aproximar os diferentes, está radicalizando a convivência entre os iguais. Eu não tenho nada contra os guetos, tanto que pertenço a uns vinte ou trinta, alguns deles até contraditórios; mas por isto mesmo, por conhecê-los de dentro, sei o perigo que representam. Os amantes da literatura em geral sempre acharam esquisitos os fãs de Ficção Científica: “Que coisa idiota, eles só lêem um tipo de livro.” Mal sabem eles que dentro desse gueto existe um gueto ainda menor, o dos "fãs de Star Trek que detestam a FC, só lêem FC se fôr relativa à série Star Trek". E mesmo dentro deste já começam a surgir guetos (estou falando em guetos com centenas de pessoas no mundo todo) ainda mais especializados, os que só gostam da Star Trek antiga e detestam a série The New Generation, ou vice-versa. Pergunte a muitos desses caras quem é Isaac Asimov ou outro nome óbvio da ficção científica, e ele dirá: “Isaque Quem?”


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