segunda-feira, 31 de março de 2008

0336) Casas que eu sonho (17.4.2004)





(foto de Gustavo Moura - detalhe)

Uma coisa que me acontece às vezes é sonhar com casas. Claro, muitos sonhos da gente acontecem dentro de casas, apartamentos, etc.; mas estes lugares são meros cenários, mesmo quando são cenários surrealistas ou absurdos, porque o sonho acontece neles, mas não é sobre eles. Comigo, no entanto, acontece sonhar que estou numa casa. “Eu” não sou eu próprio, nem sequer uma pessoa (eu sonho frequentemente que sou outra pessoa qualquer, anônima; que não sou Braulio Tavares, sou um cara desconhecido a quem estão acontecendo aquelas coisas). Mas “nestes” sonhos, eu sou como uma câmara de filmar, que percorre essas casas.

Um detalhe frequente nelas é o que eu chamo a porta-do-interior. É a porta da frente, mas no estilo das cidades do interior: uma porta cortada horizontalmente. A parte de cima é trancada por dentro com uma chave; a gente abre, olha para fora, debruça-se, conversa com quem passa. Quando é preciso entrar ou sair, abre-se a meia-porta de baixo, que é trancada com um ferrolho. Essas portas foram substituídas pelas portas-da-cidade, que são cortadas verticalmente; e mais modernamente ainda pelas portas inteiriças, como as dos apartamentos.

Nestas casas que sonho aparecem potes de água. Sempre num ângulo da cozinha; sempre num recanto onde o sol não bate em hora nenhuma. Às vezes cobertos com uma tábua quadrada onde está emborcado um caneco de lata; outras vezes cobertos com uma bandeja cheia de copos, que a gente afasta um pouco para o lado, o espaço bastante para mergulhar lá dentro um copo vazio e trazê-lo cheio.

As paredes dessas casas são curiosas, porque não sobem até o teto. Interrompem-se a uns três metros de altura, deixando um espaço vazio entre sua borda superior e o telhado. Dos caibros, onde passam lagartixas velozes, pende o fio elétrico que traz na ponta uma lâmpada, e uma extensão que termina numa “pera”, que a gente alcança com a mão, segura entre o indicador e o médio, e apaga a luz pressionando o botãozinho com o polegar, como quem aplica uma injeção. As primeiras linhas de O fiel e a pedra, de Osman Lins, descrevem uma lâmpada assim.

Nessas casas há uns enigmáticos riscos escuros nas paredes dos quartos. Riscos amarronzados como se alguém tivesse pegado um lápis-cera e feito um traço rápido. Um dia, por fim, avistei o gesto: uma muriçoca pousada na parede amarela, e uma mão de mulher, enrugada, esmagando-a – plaft! – e depois esfregando o resíduo na parede. Outra coisa são os buracos simétricos na face interna da parede que emoldura a janela: um dia, vi mãos pegando um cano de ferro, enfiando-o num buraco, e enfiando a outra ponta no buraco oposto, para servir de tranca interna à janela fechada. 

Vejo essas casas como se eu fosse apenas um par de olhos. Não ouço nada, não vejo ninguém, passeio pela casa como se ela estivesse ao mesmo tempo vazia e habitada. Como se todos, mesmo quando não os vejo, ainda estivéssemos ali.





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