(Lúcifer, por Gustave Doré)
Li um debate recente entre o Arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, e o escritor Philip Pullman, autor da trilogia Fronteiras do Universo (His Dark Materials), já traduzida no Brasil com os títulos A Bússola Dourada, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar. São romances fantásticos que envolvem questões de Teologia e religião. Pullman tem uma premissa teológica para o Universo do livro, que ele assim descreve: “Nunca existiu um Criador. Ao invés dele, existia a Matéria, que aos poucos adquiriu consciência de si mesma e produziu o Pó. O Pó, portanto, se origina da Matéria, sendo uma forma encontrada por ela para compreender a si própria. A Autoridade foi a primeira figura a se condensar deste Pó, por assim dizer, e desde então passou a ser a entidade mais antiga, a mais poderosa e a mais cheia de credibilidade. Todos os outros anjos passaram a ver nessa entidade o Criador do Universo, mas alguns anjos acharam que não era bem assim, e foi dessa forma que ocorreram a Tentação e a Queda”.
A discussão pode ser encontrada no Daily Telegraph. Mas ela me recorda dois aspectos interessantes da teoria cristã: os conceitos da Queda e do Pecado Original. Toda a religião judaico-cristã é percorrida de ponta a ponta por uma tremenda sensação de culpa, de crime cometido, de punição eterna. É o crime de Lúcifer, o Anjo Que Pensou Que Era Deus (para alguns, mais irreverentes, Lúcifer seria uma espécie de Zé Dirceu cósmico). É o crime de Adão e Eva, que experimentaram o fruto proibido do Conhecimento, o qual cortou o barato do Paraíso e fêz o dois caírem na real. A queda de Lúcifer do Céu para o Inferno e a queda de Adão e Eva do paraíso para o mundo real são mitos simétricos que servem de alerta contra a ambição, a “hubris”, como os gregos definiam a arrogância de quem julga ter poderes ilimitados e estar acima do Bem e do Mal.
Já o mito cristão é um mito na contramão dos anteriores. Jesus se ofereceu como fonte da Revelação e como alvo do mais cruel Castigo. Vejam só: um Deus abandonava seu trono e se dispunha a passar por todos os sacrifícios e contratempos dos homens comuns, e mais, sofrer uma tortura física e uma humilhação pública que só eram destinadas aos piores deles. O Cristianismo criou o Mito oposto ao da Queda pelo orgulho: o da Ascensão pela humildade. Essa anti-hubris teve um inesperado poder de sedução. Ela está em todas as lendas de nobres que jogam foram suas riquezas e vão viver com os pobres (desde Buda até Gandhi e São Francisco de Assis), em todas as histórias de rapazes burgueses que se tornaram marxistas e aderiram à guerrilha armada ou à luta social, e em todos os filhos de boa família que largaram a mansão e as empresas do papai, deixaram o cabelo crescer e foram tocar violão no mato. Não, amigos, não pensem que estou fazendo gozação. Já que é próprio dos deuses descer à Terra e sofrer os percalços da Terra, deve ser próprio dos mitos diluir-se em histórias banais de gente comum.
Mas nunca, nunca será uma experiência completa: o Deus que se submete a sofrer as dores humanas ainda assim continua sendo Deus em seu íntimo. O frágil ser humano vive na incerteza sobre a razão de tanto sofrimento. No seu íntimo o rapaz rico que brinca de pobre sabe que sempre terá uma via de retorno. O pobre de verdade não tem este sossego. E ao santo, aos mestres espirituais certamente uma estrada têm a sua retaguarda. O pobre, o humano não têm opção de retorno ao ponto de bifurcação pois o que já foi andado acabou, não há plano B para os abandonados pela sorte e o resto da estrada ninguém sabe com certeza onde dará.
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