quinta-feira, 27 de março de 2008

0304) O peso das palavras (11.3.2004)


(Desenho de Saul Steinberg)

Einstein dizia que suas descobertas sobre Física se baseavam em intuições visuais e musculares. Ele visualizava cenas e intuía movimentos, extrapolava isto para o Universo, e tentava descrever em termos científicos essas intuições. Mozart dizia que certas composições, mesmo as peças orquestrais mais complexas, lhe surgiam instantaneamente, como se fosse uma enorme mandala simétrica. Ele visualizava o todo e percebia instintivamente como teria que ser cada parte, como cada detalhe teria que ser desenvolvido para compor aquele enorme conjunto. Como tudo era simétrico, bastava perceber um aspecto para, projetando-o no conjunto, resolver de uma vez só centenas de pequenos detalhes técnicos.

Todo mundo que se dedica a uma atividade criativa desenvolve uma relação desse tipo com o material que usa. Não são somente os gênios, mas todo camarada que se senta num batente de porta para talhar madeira com um canivete, ou que ao preparar um verso sabe, sem saber como, que tal rima o levará a um beco-sem-saída e que tal outra lhe abre possibilidades de expandir o poema na direção certa. Todo trabalho artístico contém um certo grau de sinestesia, aquela faculdade que nos faz misturar os sentidos e falar numa “cor salgada”, numa “voz escura”, num “texto espinhoso”, numa “adjetivação estridente”.

Quando escrevo, tenho a sensação de que a “linha” do texto não se parece com uma linha de costura ou de pesca, que são flexíveis. Ela parece com um arame horizontal, daqueles arames onde minha mãe estendia roupa, uma linha que se sustenta a si mesma no espaço, e que é capaz de sustentar o peso de coisas que são colocadas sobre ela. A cada palavra que a gente soma à linha (e isso é mais intenso na poesia do que na prosa) é como se fôssemos prendendo pecinhas horizontais de Lego umas às outras. No Lego de verdade, chega-se a um ponto em que o peso das peças é maior do que a justeza do encaixe, e a arrumação toda desmorona. No texto, ao contrário, é possível encaixar assim centenas de palavras. Por mais peso individual que uma delas tenha, isso não faz a linha vir a baixo; mas se a gente colocar uma palavra fraca, aí sim, é como se ela desconjuntasse o conjunto, e o texto se espalhasse em cacos pelo chão. O que me lembra a frase clássica de Conan Doyle: “Nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos”.

Outra sensação que tenho quando escrevo é que algumas partes do texto se destacam, como se estivessem em negrito. A maioria das palavras são meio esmaecidas, mas outras, as que têm interesse literário, parecem ser mais encorpadas, espessas, densas, maciças, e isso de certa forma faz com que elas se projetem para fora do texto como as palavras em negrito parecem se projetar. Numa revisão, são estas as palavras inegociáveis, as que não podem ser modificadas. As outras estão ali como argamassa, passagem, conexão, mas o texto, mesmo, são aquelas que o olho instintivamente procura e reconhece.

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