quarta-feira, 26 de março de 2008

0298) Filme é filme, vídeo é vídeo? (4.3.2004)




Alguns anos atrás participei do “Festival de Vídeo 5 Minutos”, de Salvador, onde qualquer vídeo pode concorrer desde que não ultrapasse essa duração. Durante os numerosos debates, comecei a perceber que eu estava cometendo um quantidade enorme de gafes, ou melhor, estava cometendo a mesma gafe o tempo inteiro. Eu dizia: “Eu acho que a principal qualidade desse filme de fulano é a parte técnica; ele é muito bem feito, e...” Aí alguém sempre me interrompia: “Filme não. Vídeo.” Eu falava: “Tudo bem, vídeo. Esse vídeo é muito bem feito, porque tem uma ótima fotografia, e eu acho que quando um filme tem uma fotografia assim, ele ganha...” Me interrompiam de novo: “Filme não. Vídeo”. Eu às vezes levo décadas para perceber uma coisa, e acho que foi só naquela época que eu percebi essa. Claro que eu sabia que Filme e Vídeo eram coisas diferentes. O que eu não sabia é que eram religiões diferentes, como o Judaísmo e o Cristianismo.

Isto me trouxe à mente os meus anos de cineclubista na década de 1970. Os cineastas super-8 consideravam-se uma raça diferente dos cineastas 16mm, os quais por sua vez eram uma tribo distinta dos cineastas 35mm. Os superoitistas eram os porraloucas, o pessoal 35 eram os profissionais, e a turma do 16 ficava numa espécie de meio termo. Cada um desses grupos (claro, estou generalizando) tinha um orgulho desmedido da bitola técnica com que filmava, e uma adoração quase fetichista pelos seus equipamentos. Um fetichismo que hoje, curiosamente, se repete na área dos discófilos, entre o pessoal que permanece fiel aos LPs de vinil e os que aderiram totalmente ao CD (ou, no caso dos mais jovens, os que já despertaram para a música na era do CD).

Dize-me a engenhoca eletrônica a que dedicas teu amor irrestrito, e eu te direi quem és. Percebi, naquele festival de Salvador, que aquela rapaziada do vídeo tinha uma necessidade meio freudiana de se livrar do espectro paterno associado ao filme de celulóide. Havia nisto uma atitude simbólica, de demarcar um terreno próprio, uma fisionomia própria. E uma estética própria, também, porque me parece óbvio que os recursos (e consequentemente as possibilidades linguísticas) do vídeo são diferentes dos recursos do cinema, seja em que bitola fôr. E vi também em alguns um defensivismo de ordem prática: se eu só sei mexer com câmera de celulóide não tenho porque encher-a-bola das câmeras de vídeo, e vice-versa.

Eu diria, então, que por este ângulo existem dois tipos de gente que faz cinema. Existe a galera “técnica”, para quem o equipamento utilizado vem em primeiríssimo lugar, e o que define o cinema é o tipo de imagem que se consegue. E existe a galera “humanista”, para quem cinema são imagens luminosas e sonoras, em movimento, contando ou mostrando alguma coisa, e essa alguma coisa é o objetivo final, pouco importa o equipamento usado: super-8, celulóide em 35mm., VHS, vídeo digital, celular-com-internet.

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