quarta-feira, 26 de março de 2008

0293) Revólveres (27.2.2004)




Quando eu era pequeno, meus pais chegaram a se preocupar comigo. Eu não gostava das brincadeiras normais: pião, bola de gude, empinar papagaio, puxar carrinho, caminhão, etc. Fiz tudo isso, mas fiz porque todo mundo fazia. Meu negócio era arma. Cheguei a ter uma coleção de revólveres (de plástico, de madeira, de metal) que, reunida hoje, valeria uma boa grana. Minha mãe às vezes se irritava com o interminável tiroteio dentro de casa: “pêi, pêi... bum, bum, bum! Bang, bang, você está morto!” Era isso o dia inteiro.

Meninos adoram revólveres. Lá me vêm os freudianos de hoje me explicar que os meninos gostam de revólveres porque o cano é um pênis e o tiro uma ejaculação. Eu diria que há dois tipos de meninos. Os meninos para quem cano é pênis, etc., viram teóricos freudianos; e os meninos para quem um revólver é uma arma-para-matar-bandidos viram o resto da população. Para mim, um revólver era uma arma para matar índios americanos. Entre os 5 e os 12 anos eu exterminei sozinho todas as tribos do Canadá ao México.

Revendo hoje os faroestes da década de 50, vejo o quanto eram ingênuos e não-violentos. Nos tiroteios, a existência de balas era inferida através do pinote-para-trás que o bandido dava a certa altura. Era uma mortandade sem sangue, sem veias rompidas, sem tripas de fora, sem queixos despedaçados. As silhuetas de Sam Peckinpah e Clint Eastwood ainda não tinham despontado em contra-luz no alto da colina. O revólver era, para aquela coreografia de quedas (sempre havia um bandido no telhado, para ser atingindo e cair com estrépito sobre uma latada), uma mistura de instrumento musical e de batuta.

Alguns revólveres não eram automáticos: era preciso usar o polegar para puxar para trás o martelo, ou “cão”, deixando-o engatilhado, e depois apertar o gatilho com o indicador, para disparar. A necessidade de repetir este gesto num tiroteio cerrado dava origem a um dos movimentos mais interesantes da coreografia do western: o mocinho que empunhava o revólver com a mão direita e, com a borda da palma da mão esquerda, puxava o cão da arma para trás, com grande rapidez, entre um tiro e outro. Depois inventaram o revólver automático onde ao se apertar o gatilho punha-se em movimento um mecanismo que engatilhava o cão e, a seguir, disparava o tiro. Surgiu então a coreografia correspondente, a do mocinho que empunhava dois revólveres ao mesmo tempo, e estendia sucessivamente um braço, depois o outro, mirando, atirando, mirando, atirando.

“Arma de fogo viaja longe a mão da gente”, dizia Riobaldo Tatarana. Essa sensação de poder é que nos seduzia, de ter um poder inocente como se apontasse o dedo e dissesse: “Você cai! Você cai!” Imagino que é o que seduz os meninos que hoje passam horas na matança virtual dos videogames. Seduz porque sabem que não é físico. Seduz porque sabem que é faz-de-conta. Seduz porque sabem que há coisas que não devem ser feitas mas que queremos fazer para saber como é.

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