segunda-feira, 17 de março de 2008

0270) Incêndio em Alexandria (31.1.2004)




(Catedral em Chamas, foto de Gustavo Moura)


Não se iludam: a Biblioteca de Alexandria não ardeu em chamas uma vez só. Neste exato momento em que escrevo e que você me lê, existe uma biblioteca inteira virando fumaça em algum lugar do mundo. Sossegue: o que está se perdendo não são grandes obras da literatura. São os arquivos pessoais de um débil-mental qualquer que não sabe administrar direito seus recursos informáticos, e vez por outra manda para o espaço todos os arquivos do seu disco rígido, todos os seus programas, às vezes o trabalho de um mês, às vezes o de uma vida inteira.

Conheço um cara (não vou dizer quem é) que, nos velhos tempos do DOS, viu surgir na tela uma pergunta tipo: “Format C? Y N ”, hesitou só um instante e teclou Y, “yes”, achando, certamente, que o C, que ele sabia ser o disco rígido com todos os seus arquivos, estava meio desorganizado, meio desformatado, e não custava nada dar-lhe uma boa formatação, que pelo jeito significava colocar os arquivos por ordem cronológica, ou alfabética. Minutos depois ele ficou sabendo que formatar um disco é algo parecido com apagar um quadro-negro.

Na virada do Ano Novo dei uma guaribada no meu computador, que incluiu um HD de 80 Gigabytes para substituir o anterior, de 10 Gb, o qual estava tão cheio que toda vez que eu esbarrava na mesa derramava arquivos sobre a escrivaninha. Veio aqui em casa o técnico que habitualmente faz esses upgrades. Enquanto ele instalava o disco e os outros penduricalhos, eu folheava uma revista e respondia suas perguntas.

Nisto, o telefone toca, é um assunto urgente que me prende durante meia-hora. Enquanto isto, o cara reinstala o Windows, reinstala o Internet Explorer, reinstala o Outlook Express. Quando volto, encontro apenas as cinzas fumegantes de Alexandria. Esqueci de avisar a ele que queria manter os cerca de 500 Bookmarks (ou Favoritos) do Explorer, pacientemente capturados em madrugadas insones. Esqueci de avisar que queria manter o caderno de endereços do Outlook anterior, ou seja, todos os meus correspondentes eletrônicos. E esqueci de avisar que precisava daquelas 2.300 mensagens recebidas e 1.800 mensagens enviadas que atulhavam o Outlook. Como o profeta Jeremias, ajoelho-me e choro, enquanto, como dizia Castro Alves, “silêncio sepulcral estende as asas sobre a vasta ruína fumegante.”

Perdi tudo! Não, ora que diabo, não perdi nada. Endereços a gente volta a recolher (escrevam, amigos!). As mensagens não-salvas foram para o espaço, com discussões, filosofias, conversas pessoais, muitos versos, muitos trocadilhos infames, muita falação-da-vida-alheia, muito nhém-nhém-nhém por causa de dinheiro, e muitas frases inesquecíveis. Tão inesquecíveis que destruídas inda perduram, junto com as frases ditas ao ar livre, à brisa do mar, e que nenhuma fita magnética registrou. Ficam em nossa lembrança, que é a memória-RAM do tempo. A gente só esquece quando não tem mais com que lembrar.

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