segunda-feira, 17 de março de 2008

0265) A escolha de Sofia (25.1.2004)




De seis em seis meses, um calafrio perpassa pela minha casa. Talvez seja o mesmo sentido pelas vítimas de tantos “pogroms” e perseguições históricas, desde Paris sob o Terror até a Rússia czarista. É chegada a hora de um dedo implacável apontar para uma fila de indivíduos e sair dizendo: “Você morre... Você morre... Você morre... Você aí sobrevive.” Estou sendo melodramático e talvez um tanto desrespeitoso para com os seres humanos que já passaram por isto; mas concedam-me esta licença poética, porque estou falando de seres por quem sinto o mesmo amor que outros sentem por bichos e plantas: estou falando de livros.

Chegou a hora de, diante das estantes, começar o inevitável expurgo dos livros postos em horizontal por cima dos outros, dos livros empilhados no sofá, dos livros amontoados no-canto-da-parede-onde-não-dá-pra-ver-da-porta, dos livros relegados à poeira e ao mofo do antigo quarto-de-empregada, hoje depósito de tralhas e metáfora visual do Inconsciente Freudiano. É livro demais, e não pára de chegar. Cedo ou tarde, é preciso ligar para o Sebo e convocar: “Venham, tragam consigo o Trem da Morte, há 200 condenados empilhados no centro do escritório, já informados de sua sentença. Venham logo, antes que alguém se arrependa!”

Detesto, mas é preciso. Dizem os cientistas que o Universo está em expansão, mas nas prateleiras onde cabiam 70 livros há dez anos continuam cabendo os mesmo 70. Será que é porque cada livro está se expandindo também? Será que todos os objetos do Universo estão se expandindo? Apalpo, ansioso, a linha da cintura. Pela minha mente perpassam temores com que Einstein e Stephen Hawking jamais tiveram que se preocupar.

É livro demais, por isso minhas idéias estão neste tumulto. Cada viagem que faço, levo na ida uma sacola vazia dentro da mala, para trazê-la na volta cheia dos livros que compro e que ganho. Tento ler tudo, mas é impossível (desculpem, colegas!). Se o Espaço se expande, o Tempo se contrai, porque antigamente o dia tinha 72 horas, e a cada ano que passa ele vai minguando. Aos 15 anos já cheguei a ler três livros num só dia; hoje precisaria de duas semanas. E os livros se multiplicam, como coelhos australianos. Preciso passá-los adiante. É constrangedor me desfazer de um clássico da literatura comprado 15 anos atrás por uma pequena fortuna, mas, se não li até agora, não leio mais. Adeus, Marcel! Adeus, Honoré! Adeus, Fédor Mikhailovitch! Quem sabe nos veremos na velhice.

Sou, no entanto um otimista incurável. Quando meus amigos da “Berinjela” chegam pontualmente, bolsas vazias em punho, percebo que não são o Trem da Morte, são o Expresso 2222 que veio resgatar do Limbo todos aqueles livros em busca de um leitor. Passo-os adiante, como cheques polpudos que me deram a ilusão de riqueza, mas que nunca descontei. Irão respirar agora; irão ser vistos, desejados, conquistados. Outros olhos, que não os meus, os lerão. E viveremos todos felizes para sempre.

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