terça-feira, 11 de março de 2008

0241) A colonização do subconsciente (28.12.2003)




Com o passar do tempo (Im Lauf der Zeit) é o melhor filme de Wim Wenders, juntamente com Paris, Texas. Há uma cena em que dois personagens estão sentados num bar, ou numa estação de trem (não lembro direito; vi o filme em 1979), bebendo em silêncio, como alemães que se prezam. Um deles começa a cantarolar o blue “Love in Vain”, uma pequena obra-prima de Robert Johnson que os Rolling Stones tornaram famosa no mundo inteiro no seu álbum “Let it Bleed”. O outro reconhece a música, fica escutando, sorri, e depois comenta: “Os ianques colonizaram nosso subconsciente”.

Está resumida nesta breve cena a história do século 20. O capitalismo norte-americano, depois da II Guerra Mundial, saiu carimbando o mundo inteiro com o “American way of life”. Sua maior conquista não foi comprar estatais falidas ou derrubar protecionismos alfandegários, mas fazer com que os invadidos se apaixonassem pelo invasor, pela sua música, pelas suas roupas, pelas suas bebidas, pelos seus filmes, pelas suas revistas, pelos seus automóveis, pelo seus cigarros, pelos seus livros, pelas suas cidades, pelas suas canções. É um amor imposto, talvez, a ferro e fogo, na guerra surda e invisível do capitalismo selvagem. Mas amor é amor, e digo isto com sinceridade, porque é amor o que sinto pelo cinema norte-americano, pela música norte-americana, pela literatura norte-americana.

Como não sou débil mental, me precavenho estendendo este amor à França, à Rússia, à Inglaterra, à Espanha, a Portugal, ao escambau, ao mundo todo, e, last but not least, a este obstinado cinema brasileiro, a esta onipresente música brasileira, a esta inimitável literatura brasileira. Com isto, tento atenuar as sinetas pavlovianas que nossos amigos do Norte implantaram na minha cabeça. Quantas vezes me vi gastando uma nota preta para importar dos EUA o original de um gibi que li quando tinha cinco anos, ou um disco que tocava na Borborema quando eu tinha 10. Tenho amigos que moram num apartamento de 4 quartos onde dois cabem à família e os outros dois à coleção de livros de ficção científica (ou de elepês de jazz; ou de quadrinhos; ou de filmes, fotos, cartazes de filmes).

Apaixonamo-nos quando somos pequenos demais para ter um filtro crítico ou ideológico, e o detalhe shakespeariano desta tragédia é não há amor mais puro do que este. Quando vejo um filho meu comprando um disco de música pop ou um videogame, penso: “Vai comprar de novo no relançamento, daqui a dez anos; e vai comprar de novo na reedição comemorativa, daí a mais 10; e vai comprar de novo quando estiver da minha idade, só porque isso lhe traz de volta recordações boas.” Estas últimas décadas viram a alvorada de um mundo novo: um mundo onde se descobriu que em vez de vender para adultos cheios de conceitos e preconceitos é melhor vender para os cerebrozinhos livres, virgens e escancarados das crianças. Começou conosco. E não vai parar tão cedo.

3 comentários:

  1. Tá bom, concordo Braúlio, que nos colonizaram o subconsciente. Mas o exemplo não sei se é o melhor já que os Stones foram lançados (e distribuídos) por uma Cia. de discos inglesa (e no Brasil a Odeon também já era inglesa, não fosse o selo original chamado "London"). E eu diria que até pelo menos 1945 (desde 1808) a dominação (mundial) também foi do Reino Unido.

    Mas, é verdade, 50 anos de "indústria da consciência" como chama Enzensberger, tem um custo...

    Grande abraço!

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  2. Oi Egeu... Obrigado pela visita! Para efeito de História do Rock e da presente análise, inglês e americano é tudo japonês. O Rock é um joint-venture entre US/UK. abs BT

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  3. Muito bem dito....
    (e agora vou ficar viajando nisso sei lá quanto tempo...) :-)

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