terça-feira, 11 de março de 2008

0224) O centro do mundo (9.12.2003)




Críticos literários e cinematográficos usam volta e meia a mesma expressão para se queixar de um livro ou filme: “Não consegui me identificar com o protagonista.” Isto parece ser um critério importantíssimo para eles, e até compreendo, porque é uma experiência muito interessante quando durante uma narrativa conseguimos nos identificar com o protagonista. É como se tudo aquilo estivesse acontecendo com a gente, como se fôssemos nós o centro vivenciador daquela história.

Essa identificação pode ser porque achamos o personagem parecido conosco; razão pela qual os manuais de literatura infanto-juvenil nos aconselham a usar protagonistas nesta faixa de idade, porque criança não tem facilidade para se identificar com personagens adultos (será mesmo?). Pode ser também porque o protagonista, mesmo não se parecendo nem um pouco conosco, reúne algumas qualidades que gostaríamos de ter, ou pelo menos de vivenciar através de uma obra de ficção: daí que garotos gostam de se identificar com o Homem Aranha e adultos gostam de se identificar com James Bond.

Gosto muito de filmes ou livros onde me identifico com o protagonista, mas gosto igualmente de filmes ou livros onde não me identifico com nada ou com ninguém. Pode ser o enredo que me atrai. Ou a ambientação social construída pelo autor. Ou a mensagem filosófica, ou o humor, ou o estilo narrativo... Existem mil outras coisas que me atraem numa história, e essa tão badalada “identificação com o personagem” é apenas uma delas, e nem de longe a mais importante.

O que me parece é que existe um certo tipo de leitor para quem o mundo tem apenas um centro: ele próprio. Não digo que estes indivíduos sejam egoístas, mas são pessoas acostumadas a pensar apenas em seu próprio nome. Não têm o hábito de se colocar no lugar de Fulano ou Sicrano, e tentar imaginar como é que Fulano ou Sicrano pensam, e por que cargas dágua Fulano e Sicrano reagem assim ou assado. Essas pessoas fazem de si próprias o centro do mundo, e não arredam pé. São protagonistas. A vida é uma história narrada na primeira pessoa: Eu.

Outros são o contrário disso. Despregam-se com facilidade de si mesmos para imaginar-se no lugar de outros. Não precisam, vendo um filme, identificar-se com ninguém em especial, porque ao observarem tudo identificam-se com tudo que lhes surge diante dos olhos. Identificam-se com o Mundo do Filme. Para as pessoas como eu, o mundo não é um círculo, que só tem um centro: é uma parábola, que tem dois centros, ou dois focos: o olho que vê e o objeto que é visto, ou a mente que pensa e o objeto que é pensado. Para estas pessoas, é natural que seja assim. O perigo com elas é que podem resvalar para a dissociação mental, a esquizofrenia. Uma célula viva, quando desenvolve dois núcleos, tende a virar duas células. Nossa mente corre um risco parecido, mas algo em nós precisa desta bendita capacidade de sair do Centro do Mundo, de se despregar de nós mesmos.

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