terça-feira, 11 de março de 2008

0213) Hamlet, let it be (26.11.2003)


(David Warner como Hamlet)

Como é do conhecimento geral, algumas das frases mais famosas da literatura e do cinema jamais foram pronunciadas da maneira como as conhecemos. Estudiosos da obra de Conan Doyle já demonstraram por a+b que Sherlock Holmes jamais pronunciou o bordão que ficou famoso: “Elementar, meu caro Watson”. A frase “Play it again, Sam”, atribuída ao personagem de Humphrey Bogart em “Casablanca”, também não aparece em momento algum do filme. São fragmentos emblemáticos de uma obra mas que já não pertencem à obra, e sim à lenda em torno dela. Quando milhões de pessoas no mundo inteiro citam uma frase que na verdade nunca foi dita pelo seu autor, estamos diante do surgimento de mais um mito da indústria cultural.

Um dos mitos mais curiosos nesse aspecto é o de uma imagem muito famosa, que vemos repetida o tempo inteiro em cartuns, cartazes, quadrinhos, filmes, sei lá o quê. É a imagem de um sujeito pensativo, todo de preto, empunhando uma caveira e murmurando: “To be or not to be... that is the question”. Todo mundo conhece o príncipe Hamlet, e todo mundo conhece esta que é talvez a citação mais famosa na obra de Shakespeare. É, contudo, uma imagem totalmente falsa, feita de uma conjunção entre dois momentos diferentes da peça. O solilóquio do “Ser ou não ser” aparece no Ato III, cena 1, quando Ofélia é deixada a sós num quarto do castelo onde Hamlet entra sem perceber de início sua presença. A caveira pertence ao Ato V, cena 1: é a cena do cemitério, quando Hamlet e Horácio vêem os dois coveiros remexendo nos túmulos, e Hamlet, tomando uma caveira nas mãos, reconhece nela a caveira do bufão da corte com quem brincara na infância, e pronuncia o célebre trecho “Alas! poor Yorick...”

A memória popular fundiu estes dois trechos num só, e o clichê resultante não correspondente à realidade da peça, uma vez que aquela fala e aquele gesto não ocorrem ao mesmo tempo. Curiosamente, aqui se produz, na mente coletiva, o mesmo fenômeno que se produz na mente individual quando num sonho, por exemplo, fundimos numa só imagem duas imagens ou duas realidades separadas. Nossa memória também costuma nos pregar estes truques, e não são poucas as vezes em que atribuímos a uma pessoa uma fala dita por outra, ou lembramos com riqueza de detalhes um acontecimento mas pensamos que ele teve lugar em outra cidade.

No caso da imagem do “Hamlet”, me parece que essa cena imaginária se dá por um processo que poderíamos chamar de enriquecimento de linguagem, ou mais pomposamente, de semiótica transgênica. (Danou-se, eu agora fui longe) É o que ocorre quando duas imagens são tão fortes que se atraem mutuamente, mesmo não estando ligadas em sua origem. É como se nossa mente escolhesse o gene mais forte de uma cena (o “ser ou não ser”) e o de outra (a caveira) e os unisse para criar uma imagem tão forte que, mesmo não tendo sido criada diretamente por Shakespeare, é hoje a sua herança mais popularmente lembrada.

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