terça-feira, 11 de março de 2008

0208) A Índia misteriosa (20.11.2003)




O que conhecemos da Índia? Eu, de minha parte, só conheço um melelê confuso de lugares-comuns: vacas sagradas, sujeitos magros se banhando no Ganges, música de cítara, templos deslumbrantes, Gandhi fiando em sua roca, seitas massacrando-se umas às outras, barbudos de turbante, e um clima de misticismo que me traz à mente um Juazeiro do Padre Cícero com um bilhão de habitantes. Dois dos romances fantásticos mais impressionantes que li nos últimos tempos passam-se ali. “Song of Kali” de Dan Simmons (ganhador do World Fantasy Award de 1986) conta o pesadelo de um jornalista americano que leva a família à Índia para pesquisar um poeta obscuro e tem sua filhinha raptada, sendo forçado a um mergulho num submundo aterrorizante e incompreensível. “O Cromossomo Calcutá” de Amitav Gosh (Editora Ática, 1998) nos desvenda aos poucos uma incrível conspiração secreta para descobrir o segredo da imortalidade, e é um dos melhores livros de ficção científica de um autor do Terceiro Mundo.

Quando eu tinha dezoito anos, a Índia tinha a segunda indústria cinematográfica do mundo, depois dos Estados Unidos; hoje, diz-se que tem a primeira. Víamos com admiração um fato quase inacreditável: filme americano não passava lá. Indianos só se interessavam por filmes indianos, a despeito do fato de que lá se falam centenas de línguas e dialetos diferentes. Que mundo era esse, ao mesmo tempo medieval e pós-moderno, industrializado e faminto? A Índia era um Brasil elevado ao quadrado.

Salman Rushdie afirma que muitos filmes hindus fariam “O mágico de Oz” parecer um exemplo do mais pedestre dos realismos. O delírio imaginativo dessa indústria, chamada de “Bollywood” (Bombaim + Hollywood) pode desconcertar espectadores ocidentais, acostumados a convenções narrativas basicamente norte-americanas. Será que os indianos são mesmo um povo interessadíssimo em si próprio, um povo pouco disposto a se deixar seduzir por qualquer moda criada pelos EUA? Existirá esse povo?

É também Rushdie o autor de um cálculo curioso, num dos ensaios de sua coletânea “Imaginary Homelands”. Diz ele que num dia em que não tinha nada para fazer começou a contar quantos deuses existiam na Índia, desde os espíritos mais elementares da terra e das águas até Brahma e Alá. O número a que chegou estava na casa dos 330 milhões. Por algum motivo, isto faz sentido. A Índia é múltipla por natureza; é uma civilização quantitativa, caudalosa, inesgotável. Não vai ser fácil reduzi-la ao cartesianismo cultural, ao pragmatismo materialista dos americanos, à dramaturgia “boy meets girl” de Hollywood, a uma religião sem ídolos, sem esculturas, sem divindades de oito braços e vinte rostos. O mistério da Índia não é um segredo oculto, é um mistério com milhões de nomes e de formas, visível em cada poste, em cada esquina, em cada rosto, em cada imagem. É uma cultura onde o Barroco foi potencializado pela alta tecnologia, e talvez sobreviva à decadência do Ocidente.

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