segunda-feira, 10 de março de 2008

0195) A cruz de Descartes (5.11.2003)




A cruz é o símbolo da Cristandade. (Fico às vezes imaginando como seria a iconografia cristã se Cristo tivesse morrido na forca) É também o símbolo da grande contribuição do filósofo René Descartes para a matemática: o famoso “eixo cartesiano”. 

O leitor deve ter uma razoável lembrança dos seus anos de ginásio. O eixo cartesiano é aquela cruz onde a linha horizontal representa os valores da incógnita “x” e a linha vertical os valores de “y”, ou seja, o valor da função proposta. 

Se a gente diz que x + 2 = y, por exemplo, para cada valor que a gente atribuir a X o valor de Y mudará de acordo.

Descartes teve a intuição de representar isso visualmente através de linhas onde seriam marcados esse valores, como numa régua. 

Descobriu também que o gráfico da função linear (sem quadrados) é uma reta; quando o X está elevado ao quadrado, o gráfico é uma curva. 

Pode parecer difícil, mas é algo de uma simplicidade e de uma beleza estonteantes. E muito útil também. Toda a computação gráfica que usamos hoje, desde os comerciais de TV até Matrix Reloaded, baseia-se nesta possibilidade de batizar numericamente todos os pontos de um espaço, atribuir-lhes características, e planejar seus deslocamentos.

Mas é curioso que uma tal descoberta tenha surgido a partir da Cruz, que não é somente o instrumento de suplício usado pelos romanos. Ela é também um símbolo místico de união entre o humano e o divino. 

O traço horizontal da Cruz, que lembra o horizonte, é o símbolo do mundo visível, material. 

O traço vertical, que se eleva às alturas e desce às profundezas, significa a existência de um mundo espiritual. 

O centro da Cruz (que corresponde ao que chamamos “o zero cartesiano”) é onde está o corpo de Cristo, simbolizando em si a fusão entre o humano e o divino.

Descartes tinha a saúde frágil; desde a infância acostumou-se a passar a manhã inteira na cama, pensando. Foi soldado, cortesão, aventureiro. Viajou a Europa inteira, sofreu perseguições religiosas e políticas, foi acusado de herege e de fazer parte do Colégio Invisível dos Rosacruzes, cujos manifestos filosóficos causavam reboliço na Europa do século 17. 

Acabou indo morar na Suécia, convidado a dar aulas de filosofia à Rainha Cristina (aquela interpretada por Greta Garbo num dos seus melhores filmes). Forçado a acordar às 5 da manhã no inverno, morreu pouco depois, aos 54 anos.

Teria Descartes percebido que seu “eixo”, gene inicial de toda a Geometria Analítica, permitia afirmar que para cada valor que atribuímos a X, o Homem, teremos uma função de Y, que é Deus? Que com isto ele fundia a matéria e o espírito, o mundo humano e o mundo divino? 

Seu sucesso em fundir geometria e álgebra nos possibilita não só descrever matematicamente uma imagem, mas criar uma imagem com recursos puramente matemáticos. A Imagem e o Número, o corpo e a alma, o profano e o sagrado encontraram-se num ponto-zero, e esse ponto chamou-se René Descartes.






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