segunda-feira, 10 de março de 2008

0188) Avestruz com Leite (28.10.2003)



Tenho uns amigos que, apesar de gostarem muito de mim, estão considerando a possibilidade de fazer uma vaquinha e pagar um pistoleiro para dar cabo da minha inofensiva pessoa, pela minha mania de falar mal do forró falsificado que anda se espalhando no mundo feito uma impingem. Dizem que eu sou retrógrado, conservador e arcaico, que só admito como legítimo o forró pé-de-serra, e que nego a possibilidade de evolução de uma música que continua viva, atuante, e amada pelo Povo. “Você pode detestar um tipo de música,” dizem, “mas deixe o Povo gostar.”

Ora, quem sou eu pra mandar no Povo? Eu não mando nem na minha casa! Por outro lado, o coração do Povo é grande, o Povo ama tudo que toca no rádio. O Povo ama toda música que escuta, porque o Povo tem um coração puro como o de Garrincha. Garrincha era irresponsável, cachaceiro, raparigueiro, mas era um dos sujeitos mais puros e mais honestos que já passaram por este país: ele amava só o futebol, a dança da bola, e para ele todo o resto era secundário. Por essa pureza ele acabou como acabou, e por essa pureza (que começa por achar que todo mundo é tão puro quanto a gente) o Povo brasileiro vai acabar onde vai acabar.

O chamado forró Avestruz Com Leite é uma música charmosa, alegre, saltitante, excelente para os que têm jeito (não é meu caso) de pegar a “cavaleira” pela cintura e botá-la para fazer piruetas salão afora, só tocando no chão de vez em quando pra se lembrar que ele existe. Essa dança tem nome: chama-se lambada, e foi uma invenção de dois franceses (Lorsac e Karakos), em 1989. O sucesso internacional disso fêz surgir uma porção de grupos que, não podendo usar o termo “lambada” (que os franceses, sabiamente europeus, registraram) optaram por “forró”. O resto é história.

Não tenho nada contra essa música – mas não é forró. Se a chamassem de “partido alto” ou de “blues”, eu também protestaria. Não podemos permitir que empresários e publicistas passem por cima de uma história musical inteira, e comecem a chamar Jesus genésio. Isto não é conservadorismo: é impedir estelionatos culturais, é impedir que um cara rico venda seu produto usando o rótulo do concorrente mais pobre, ou passe um cheque seu usando a assinatura de quem tem, de fato, saldo no Banco da MPB.

Não sou contra “forró eletrônico”. Aliás, alguns dos artistas que mais gosto fazem justamente forró eletrônico: estão aí Mestre Ambrósio, DJ Dolores, Cabruêra, Silvério Pessoa, Cascabulho. No trabalho de todos estão presentes células melódicas, rítmicas, estruturais, instrumentais, sonoras e poéticas do forró. Não é forró pé-de-serra. É uma música criada por músicos que amam a música, que ouvem Gonzaga e Jackson mas não querem imitá-los. É o forró de hoje, e se Deus quiser será o forró do futuro próximo. A lambada, como música, tem seu espaço, seu momento, seu público. Nada contra. Mas se deixarem, esse pessoal acaba invadindo a Argentina e dizendo: “Isto aqui chama-se tango”.

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