Eu considero a Narrativa uma forma de arte. É a arte de contar histórias, tão antiga quanto a linguagem, e que (já que ninguém pode provar nada, podemos todos especular à vontade) pode muito bem ter sido o impulso que, no mundo primitivo, deu origem à literatura oral, à poesia, ao teatro, à dança. Imagino que o homem primitivo dramatizava acontecimentos com a voz, a palavra e o corpo. Usava esses elementos para reproduzir acontecimentos que eram do conhecimento da tribo (uma caçada, uma batalha, um encontro com algo fora do comum) ou para rituais mágicos, aqueles onde encenamos algo para fazer com que aconteça (véspera de caçada ou de batalha).
A Narrativa está presente em filmes, peças de teatro, óperas, histórias em quadrinhos, poemas, videogames, romances, canções, balés – desde que cada um deles conte uma história. Existe algo em comum entre o romance Vidas Secas de Graciliano Ramos e o filme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos. Por mais diferentes que sejam, em matéria-prima, um romance (sinais gráficos em folhas de papel) e um filme (imagens luminosas em movimento, sonorizadas), existe ali uma Narrativa, uma história (ou estória, como queria Guimarães Rosa), uma sucessão de eventos que é a mesma nas duas obras, e entre as quais é possível ir apontando correspondências. A Narrativa nunca é exatamente a mesma quando muda de meio de expressão, mas está sempre lá.
Existem milhares, talvez milhões de versões das narrativas tradicionais, que geralmente são bem curtas e simples. Isto vale para uma lenda grega ou hindu, para um conto folclórico como “Chapeuzinho Vermelho” ou para uma anedota de português ou de bêbado. Se comparássemos um milhão de versões da história do “Chapeuzinho” (orais, impressas, cinematográficas, em quadrinhos, em TV, em teatro, em desenho animado), não haveria duas versões iguais, mas há um núcleo de elementos que é o “DNA” daquela história. Há um texto de Lévi-Strauss sobre o Mito que o descreve como esse conjunto de elementos, nunca exatamente os mesmos, mas presentes nas diferentes versões, e que se tornam cada vez mais nítidos quanto mais versões são consultadas.
No meio cinematográfico existe uma máxima de que é mais fácil extrair um bom filme de um mau romance do que de uma obra prima. Isto se explica pelo fato de que o que chamamos de obras primas literárias são obras que se destacam pelo estilo, pela linguagem, pela criatividade verbal – e nada disto pode ser transposto para a tela. E há muitos romances maus que consistem em histórias bem imaginadas mas escritas de maneira canhestra, com má escolha de material verbal (defeito que some na tela) e erros de estrutura (defeito que pode perfeitamente ser corrigido por um bom roteirista). Quando se tem uma Narrativa interessante, ela geralmente pode ser transposta sem grande perda para qualquer outro meio. Passa por uma mutação de forma, mas mantém o seu DNA original, a sua essência de história, ou estória.
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