No filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha fêz uma espécie de ultrassonografia do sertão nordestino, com suas crises sociais e seus conflitos de idéias. O vaqueiro Manuel é explorado pelo patrão, e o mata a facadas. Foge com a mulher, Rosa. Os dois acabam se juntando a um grupo de devotos que acompanha o beato Sebastião, um líder messiânico que lhes promete uma vida de fartura. Manuel torna-se um seguidor fanático do beato, mas quando as tropas do governo atacam o grupo, Rosa esfaqueia o beato e os dois voltam a fugir. Encontram-se com o bando do cangaceiro Corisco e juntam-se a ele; Manuel vira cangaceiro, Rosa entrega-se a Corisco. Quando Antonio das Mortes, pistoleiro a serviço do governo, ataca o bando e mata Corisco, os dois voltam a fugir e o filme acaba.
O refrão do filme é “O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”. A equação básica usada por Glauber deriva do livro Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó, que estabeleceu o cangaço e o messianismo religioso como as duas principais rupturas dos nordestinos que não têm educação, não têm ideologia, não têm uma noção exata do que precisam fazer para mudar o que vêem à sua volta, mas precisam desesperadamente romper com aquilo, explodir, virar o mundo de cabeça para baixo. E têm estas duas opções, duas explosões cegas de inconformismo, dois becos sem saída mas que de início lhes parecem rotas de fuga: a violência egoísta do cangaço, e a ilusão de salvação oferecida pelo fanatismo.
Bom, isto era a vida no sertão na primeira metade do século passado. Curiosamente, o que se vê hoje nas favelas e periferias das grandes cidades é o ressurgimento dessas duas forças, que mais uma vez sugam para dentro dos seus quadros todos os humilhados e ofendidos que não vêem saída para suas vidas, mas que não querem se entregar à vida que sugou seus pais: exploração e trabalho, trabalho e exploração.
O cangaço de hoje é o tráfico, o messianismo de hoje são as igrejas evangélicas. Tráfico e evangelismo, Corisco e Sebastião, vêm cercando com seus exércitos os condomínios, as praias, os escritórios, as universidades, os shopping centers e os apartamentos onde elite e classe média se encurralam, tentando entender o que lhes acontece. Traficantes e evangélicos travam guerras (e até montam alianças) pelo aliciamento e recrutamento das populações desamparadas e disponíveis de nossas imensas, inesgotáveis periferias urbanas. O tráfico atrai os hiperativos, os resolutos, os destemidos, os vaidosos, os ambiciosos, os que acham que é bom negócio viver intensamenmte, curtir tudo a que se tem direito (dinheiro, drogas, mulheres) e morrer fuzilado no meio da rua aos vinte anos. O evangelismo atrai os tranquilos, os conformados, os cautelosos, os místicos, os compassivos, os que sonham com outro mundo sem a violência e a exploração injusta que parecem ser o artigo primeiro da Constituição deste mundo aqui. As multidões aumentam. O mar virou sertão.
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