Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 8 de março de 2008
0111) Histórias contadas muitas vezes (30.7.2003)
(No Tempo das Diligências, de John Ford)
Um caso ilustrativo das fronteiras pouco nítidas entre imitação, cópia, plágio e adaptação é uma antiga história que vem passando de mão em mão nos últimos cem anos. Boule de Suif é uma novela de Guy de Maupassant, de 1880, onde Bola de Sebo, uma prostituta parisiense, viaja de carruagem com um grupo de pessoas de bem. É a época da guerra entre a França e a Prússia, e eles são detidos por um destacamento de soldados prussianos, cujo oficial sente-se atraído por aquela rapariguinha simpática, e exige, para liberar a carruagem, que ela durma com ele. Ela se nega. Os burgueses, irritados, a pressionam; afinal, ela não dorme com qualquer um? Ela cede, entrega-se ao oficial, e durante o resto da viagem volta a ser humilhada pelos demais.
Hollywood, 1939. O diretor John Ford, alegando basear-se numa história de Ernest Haycox, junta-se ao roteirista Dudley Nichols para contar a história de Dallas, uma prostituta de bom coração, que viaja numa diligência cheia de gente decente. Em seu ácido romance sobre Hollywood, What makes Sammy run?, Budd Schulberg faz um personagem ironizar: “Olha, eu conheço um cara que encheu o bolso de grana há pouco tempo com uma história de Guy de Maupassant. Tudo que ele precisou fazer foi transferir uma puta de uma carruagem francesa para uma diligência do Oeste.” Ford usou todas as situações do conto de Maupassant, menos a principal – o fato da mulher ter que se prostituir para salvar os outros passageiros.
Brasil, 1978. Esta situação vai emergir na peça Ópera do Malandro, de Chico Buarque, baseada na Ópera dos três vinténs de Brecht. Acho que todos lembram a canção “Geni e o Zepelim”, em que uma prostituta chamada Geni (que na peça, na verdade, é um travesti) vive marginalizada em sua cidade até que um dia um Zepelim surge no ar. O capitão do Zepelim diz que só não destruirá a cidade “se aquela formosa dama” se entregar a ele. E começa o famoso coro: “Vai com ele, vai, Geni! Você dá pra qualquer um! Bendita Geni!” O final da história, já conhecemos. Geni recusa-se, mas acaba cedendo, entrega-se ao capitão... e ao abrir os olhos na manhã seguinte após a partida do Zepelim, já ouve lá fora o antigo coro: “Joga pedra na Geni!...”
Isso é plágio, é cópia, é imitação barata? Prefiro acreditar que certas situações dramáticas são inesgotáveis, por isso são usadas por tanta gente. Na verdade, quando as usamos não as esgotamos: nós as enriquecemos. A canção de Chico Buarque tem uma riqueza de elementos que a canção da peça de Brecht (“Jenny e os piratas”, creio), o filme de Ford e o conto de Maupassant não têm. Quando pedimos emprestada uma idéia que já existe, nossa primeira obrigação é enriquecê-la, injetar-lhe novidade, cobri-la com novas camadas de contexto humano e social. O desafio de Chico era ir além de Brecht e dos outros. Quem usar esta idéia agora, tem que ir ainda além de Chico. Desafios assim fazem a literatura crescer.
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