sábado, 8 de março de 2008

0109) O velho e o mar (27.7.2003)




(ilustração: Jan Hrebicek)

A coleção de livros do Globo e da Folha de São Paulo pôs nas bancas O velho e o mar de Hemingway. 

O livro poderia intitular-se “O menino, o velho, o mar e o peixe”, porque são quatro seus protagonistas. 

Li esse livro uma vez quando era garoto, com olhos de garoto para quem o velho não poderia ser outro senão meu pai, que me deu o livro de presente. Relê-lo agora, quarenta anos depois, é trocar de olhos; e fechar um ciclo.

Hemingway era mais truculento e machista na vida real do que nos livros. Talvez porque na vida real ele fosse um personagem de Hemingway, e nos livros fosse apenas ele mesmo. 

O velho e o mar é um livro de enorme aspereza e enorme doçura. Compõe um tríptico com Moby Dick de Melville, onde o “peixe” é o Mistério, e com o Tubarão de Spielberg, onde o peixe é o Mal. 

Em Hemingway, o marlim é quase humano, e ao mesmo tempo uma imagem de indescritível beleza e altivez. O Velho pede-lhe perdão por matá-lo, e diz: 

“Nunca vi nada mais bonito, mais sereno ou mais nobre do que você, meu irmão. Venha daí e mate-me. Para mim tanto faz quem mate quem, por aqui.”

Há um verso de Oscar Wilde que diz “todo homem mata a coisa que ama”. Pode até ser, mas este livro nos dá o caso, mais notável, do homem que ama a coisa que mata. 

Lembro a cena final do “Augusto Matraga” de Guimarães Rosa, depois que Matraga e Joãozinho Bem-Bem se esfaqueiam mortalmente um ao outro. Caído, agonizando, Matraga vê a multidão a gritar e debochar do jagunço que estertora ao lado, aí ergue-se e diz: 

“Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!”

É um aspecto curioso da mentalidade masculina essa admiração guerreira pelo inimigo cuja nobreza impõe respeito. 

A luta de morte não é sempre um esforço para exterminar algo maligno, algo que desperta apenas medo e asco. A luta às vezes se dá por causa de forças muito acima dos dois lutadores, que estão ali, naquele momento, apenas cumprindo um ritual cósmico. 

Eles são os dois pontos através dos quais dois mundos entram em choque; o fato de um deles precisar ser destruído nesse choque não exclui o respeito, a admiração recíproca, como num combate sem quartel entre dois samurais.

São tantas as interpretações sobre O velho e o mar que me arrisco a somar mais uma. 

O velho é um Escritor. O menino é um Leitor. O peixe é um Livro. O mar é o lugar onde os escritores vão buscar os livros, seja este lugar o que fôr. 

Depois de toda aquela luta, o que o Escritor consegue trazer ao mundo parece-lhe um monte de despojos, de destroços sem sentido. Os outros o elogiam, mas ele sabe que foi o único a ter a visão do Livro-como-era-para-ter-sido. Ele viu um clarão, tentou transmitir seu reflexo. O que trouxe é pouco; mas pelo menos ele teve o privilégio de ver o Livro como o Livro era antes de ser trazido à terra.






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