sábado, 8 de março de 2008

0099) O centauro, a catedral e a televisão (16.7.2003)



(Catedral de Rouen, com projeção luminosa)

A Arte de Ver é mais recente do que parece. Os gregos, por exemplo, não tinham o hábito de usar cavalos como montaria. Quando começaram a ver tribos de nômades a cavalo, julgaram que o torso daqueles homens emergia diretamente do corpo do animal, e assim surgiu a lenda do centauro. 

O que prova, pelo menos para mim, que é mais fácil inventar uma coisa impossível do que aceitar uma coisa com a qual não se está acostumado.

Algo parecido sucedeu na América. O cavalo era desconhecido em nosso continente, e os incas, astecas, etc. não entendiam por que motivo eles matavam metade daquele monstro e a outra metade se despregava da metade morta e continuava batalhando. 

Não adiantaria de nada chegar para os incas e gritar: “Vocês estão cometendo um erro conceitual!” Eles só enxergavam o que estavam preparados para enxergar.

Há um conto policial em que o detetive vê na neve as pegadas de um homem e uma mulher indo até a beira de um rio, e depois as pegadas do homem voltando sozinho. A dedução imediata é de que a mulher foi embora de barco, ou nadando. O detetive, contudo, observa que na volta as pegadas do homem estão mais profundas do que na ida, e que portanto ele voltou carregando o corpo da mulher nos braços.

Bertrand Russell disse certa vez que durante milênios os seres humanos pensavam numa junta de bois e num par de dias sem perceber que a ambos se aplicava o conceito de “dois”. 

Descobrir o conceito de número é uma coisa intelectualmente tão embriagante que tem gente que não pára nunca mais. Para alguns cérebros, transforma-se numa função exclusiva, atrofiando todo o resto. O “rain man” de Dustin Hoffman via uma caixa de fósforos ser derramada no chão e dizia de imediato: “Cinquenta e oito...” Ele via. Ele só via isso.

Às vezes enxergamos muitos sem perceber que estamos vendo apenas um. Foi o que sucedeu com Halley, que um dia se tocou que “aqueles cometas todos” que passavam era um só, voltando a intervalos regulares. 

Em outros casos, só conseguimos descrever adequadamente uma coisa se a considerarmos como duas. É o caso da luz, que tanto pode ser formada de ondas quanto de partículas, duas descrições que se auto-excluem, mas que parecem ambas corretas.

Conta uma historieta que um camponês levou certa vez à cidade seu filho pequeno, que nunca tinha saído da roça. Lá, foram à catedral, uma daquelas gigantescas catedrais góticas: Reims, algo assim. Quando voltaram para casa, a família pediu ao menino que descrevesse a catedral que tinha visto. Ele hesitou, hesitou, e por fim pôs as mãos no chão, plantou uma bananeira, e ficou ali sem dizer uma palavra. Eu não conheço melhor descrição da experiência de entrar numa catedral gótica. 

Outro matuto, lembrado por Guimarães Rosa, ouviu a avó pedir-lhe que explicasse como era a tão falada televisão, e saiu-se com esta: “Vó já viu uma máquina de costura? Pois bem: a televisão é completamente diferente!”







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