Dias atrás vi uma reportagem sobre a ação dos pichadores, aqueles garotos (não creio que haja cinquentões fazendo isto) que pintam monogramas com spray em lugares que são vistos por todo mundo. Uma autoridade qualquer, entrevistada, queixava-se; “É preciso que alguém explique a esses garotos que esses prédios são públicos, são um patrimônio deles também.” Pra mim, já começa daí o equívoco.
Uma parte desses pichadores são garotos que já sabem muito bem que aqueles prédios pertencem a eles. São garotos de classe média alta, que entram num carro-do-ano, de madrugada, e saem pela cidade pichando. Picham para se divertir. A cidade é deles. Se uma patrulha da PM os flagrar, eles perguntam se o PM sabe com quem está falando. Se fôr preciso, metem a mão no bolso e financiam a cervejinha. Se forem levados para a Delegacia, o pai chega daí a uma hora e solta todo mundo. Picham por isso: porque sabem que a cidade é patrimônio deles, playground deles.
Outra parte é o contrário. São garotos de baixa classe média, cujo investimento financeiro só dá para o spray. Se a polícia os pegar, vão presos. Para eles, a aventura não é virtual, não é sem riscos. Tem perigo envolvido, mas vale a pena, porque pichando seu logotipo naquelas fachadas eles estão, simbolicamente, se apossando de uma coisa que nunca lhes pertenceu, que nunca vai lhes pertencer.
Outro equívoco é ilustrar essas denúncias com a foto da pichação. Tudo que os garotos querem é que milhares de pessoas vejam a sua “obra de arte”. Fotografar e publicar a pichação é dar-lhes de mão beijada a divulgação que sonham. A essência da pichação é ser visível. Pichação que ninguém vê não tem graça. Pichação que sai na TV... é a glória.
O filme Cidade de Deus tem uma sequência onde o rapaz fotografa os traficantes morrendo de medo de ser morto por causa disso, e descobre em seguida que os próprios traficantes compram pilhas de jornais para mostrar a todo mundo a foto. Bandido pequeno adora sair no jornal. Quem não gosta de sair no jornal é bandido grande, porque isso desperta a curiosidade do Ministério Público, da Receita Federal e de outros sistemas de segurança que, não podendo ir atrás de todo mundo, vão atrás de quem dá muita bandeira.
Há alguns anos um telejornal do Rio anunciou que a torre da Central do Brasil tinha sido pichada. Mostrou a torre à distância, tão longe que não dava para ver a pichação em detalhe. E depois fêz uma longa entrevista com os encarregados da limpeza, que também tiveram de fazer algumas acrobacias arriscadas para ter acesso ao mesmo local. Eram uns caras simpáticos; não ligavam para o risco que estavam correndo, e tinham talvez a mesma origem social dos pichadores. Se é para botar alguém sob os refletores, melhor botar quem limpa, e não quem suja. Quem suja a cidade perde um pouco o direito de ser dono dela. Quem limpa a cidade se candidata a esse direito.
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