sexta-feira, 7 de março de 2008

0027) A Arte da Cura (23.4.2003)




Um médico é um cara que cura uma doença; um artista é um cara que transforma essa doença numa cura para outra coisa. 

As imagens talhadas por Aleijadinho eram a cura simbólica de seu próprio corpo que se desfazia. Uma espécie de vudu do Bem, onde ele projetava no “boneco” o que ele gostaria que se reproduzisse em si próprio.

Psicanalistas usam o conceito de lacuna, oco, pedaço faltante, para explicar certas atividades obssessivas, inclusive na arte. 

Há um espaço vazio, de onde Algo foi arrancado, e é preciso preencher este espaço a qualquer custo. Esse buraco pode ser minúsculo; mas se por ele der para passar um grão de areia, pode passar todo o deserto de Saara, é só uma questão de tempo.

Muitos buscam preencher o buraco com arte. O escritor Philip K. Dick (autor das histórias originais de Blade Runner e de Minority Report) nasceu com uma irmã gêmea que morreu semanas depois. A morte dessa pessoa que ele jamais conheceu manchou sua vida com o remorso de ter-lhe sobrevivido. 

Dick era, como Fernando Pessoa, uma espécie de esquizofrênico que sabe que o é. Certa vez afirmou que sua mente era dividida em duas, ele próprio e a irmã. Seus personagens são assombrados por visões onde percebem que não são reais, que são apenas a imaginação de alguém.

Já a obra de Ariano Suassuna é, assumidamente, uma tentativa literária de recriação do Sertão harmonioso estilhaçado pelo assassinato de seu Pai. A obra é marcada pela dor da perda, mas vê-se na pessoa do escritor um equilíbrio íntimo com a tragédia, uma serenidade que Dick, um atormentado, jamais alcançou. 

Equilíbrio semelhante foi alcançado por Osman Lins, o romancista de Avalovara, que nunca conheceu a própria mãe, morta logo após o parto. Dizia ele: “Minha mãe não deixou fotografia, de modo que eu fiquei com essa espécie de claro atrás de mim. O trabalho do escritor, metaforicamente, seria construir, com a imaginação, um rosto que não existe.”

Um livro aterrorizante e comovente sobre este tema é W ou a Memória da Infância (Companhia das Letras, 1995), de Georges Perec, escritor judeu de Paris, cujos pais morreram durante a ocupação nazista. 

Ele entremeia as raras lembranças dos pais com a descrição de uma ilha imaginária onde um regime fascista obriga os habitantes à prática de esportes insensatos. Esta narrativa de pesadelo é entremeada por parágrafos curtos onde ele diz: “Teria gostado de ter ajudado minha mãe a limpar a mesa da cozinha depois do jantar... De todas as lembranças que me faltam, esta é talvez a que eu mais fortemente gostaria de ter: minha mãe me penteando...”

Perec (palavra que em hebraico, peretz, quer dizer “buraco”) alterna os episódios banais mas preciosos que lembra de sua infância com a narrativa kafkeana daquela ilha-presídio cujos deuses são O Número e A Competição. 

O trabalho de cura através da Arte não é apenas o resgate da Beleza perdida, é também o enfrentamento com o Mal que a arrebatou. Não se cura uma ferida sem tocar nela.






3 comentários:

  1. O simples que aprofunda diz de forma genial. Belo texto

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  2. O simples que aprofunda diz de forma genial. Belo texto

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  3. eu num consigo pensar em um comentário para esse texto, que não seja uma paráfrase do próprio:
    "O trabalho de cura através da Arte não é apenas o resgate da Beleza perdida, é também o enfrentamento com o Mal que a arrebatou. Não se cura uma ferida sem tocar nela."
    Ducarai!

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