Um médico é um cara que cura uma doença; um artista é um cara que transforma essa doença numa cura para outra coisa.
As imagens talhadas por Aleijadinho eram a cura simbólica de seu próprio corpo que se desfazia. Uma espécie de vudu do Bem, onde ele projetava no “boneco” o que ele gostaria que se reproduzisse em si próprio.
Psicanalistas usam o conceito de lacuna, oco, pedaço faltante, para explicar certas atividades obssessivas, inclusive na arte.
Há um espaço vazio, de onde Algo foi arrancado, e é preciso preencher este espaço a qualquer custo. Esse buraco pode ser minúsculo; mas se por ele der para passar um grão de areia, pode passar todo o deserto de Saara, é só uma questão de tempo.
Muitos buscam preencher o buraco com arte. O escritor Philip K. Dick (autor das histórias originais de Blade Runner e de Minority Report) nasceu com uma irmã gêmea que morreu semanas depois. A morte dessa pessoa que ele jamais conheceu manchou sua vida com o remorso de ter-lhe sobrevivido.
Dick era, como Fernando Pessoa, uma espécie de esquizofrênico que sabe que o é. Certa vez afirmou que sua mente era dividida em duas, ele próprio e a irmã. Seus personagens são assombrados por visões onde percebem que não são reais, que são apenas a imaginação de alguém.
Já a obra de Ariano Suassuna é, assumidamente, uma tentativa literária de recriação do Sertão harmonioso estilhaçado pelo assassinato de seu Pai. A obra é marcada pela dor da perda, mas vê-se na pessoa do escritor um equilíbrio íntimo com a tragédia, uma serenidade que Dick, um atormentado, jamais alcançou.
Equilíbrio semelhante foi alcançado por Osman Lins, o romancista de Avalovara, que nunca conheceu a própria mãe, morta logo após o parto. Dizia ele: “Minha mãe não deixou fotografia, de modo que eu fiquei com essa espécie de claro atrás de mim. O trabalho do escritor, metaforicamente, seria construir, com a imaginação, um rosto que não existe.”
Um livro aterrorizante e comovente sobre este tema é W ou a Memória da Infância (Companhia das Letras, 1995), de Georges Perec, escritor judeu de Paris, cujos pais morreram durante a ocupação nazista.
Ele entremeia as raras lembranças dos pais com a descrição de uma ilha imaginária onde um regime fascista obriga os habitantes à prática de esportes insensatos. Esta narrativa de pesadelo é entremeada por parágrafos curtos onde ele diz: “Teria gostado de ter ajudado minha mãe a limpar a mesa da cozinha depois do jantar... De todas as lembranças que me faltam, esta é talvez a que eu mais fortemente gostaria de ter: minha mãe me penteando...”
Perec (palavra que em hebraico, peretz, quer dizer “buraco”) alterna os episódios banais mas preciosos que lembra de sua infância com a narrativa kafkeana daquela ilha-presídio cujos deuses são O Número e A Competição.
O trabalho de cura através da Arte não é apenas o resgate da Beleza perdida, é também o enfrentamento com o Mal que a arrebatou. Não se cura uma ferida sem tocar nela.
O simples que aprofunda diz de forma genial. Belo texto
ResponderExcluirO simples que aprofunda diz de forma genial. Belo texto
ResponderExcluireu num consigo pensar em um comentário para esse texto, que não seja uma paráfrase do próprio:
ResponderExcluir"O trabalho de cura através da Arte não é apenas o resgate da Beleza perdida, é também o enfrentamento com o Mal que a arrebatou. Não se cura uma ferida sem tocar nela."
Ducarai!