quinta-feira, 15 de maio de 2025

5179) A mãe do escritor (15.5.2025)




(Cornell Woolrich e sua mãe Claire)

 
Na tarde chuvosa e cor-de-chumbo deste domingo recente, passei algumas horas folheando livros e anotações, preparando aula para um curso. Aproveitei para reler algumas páginas sobre Cornell Woolrich (1903-1968), um dos meus autores preferidos naquele subgênero que chamamos de “romance policial noir”. 
 
Os livros de Woolrich já foram filmados por Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta), François Truffaut (A Noiva Estava de Preto), Robert Siodmak (A Dama Fantasma), Rainer Werner Fassbinder (Martha) e muitos outros. Geralmente são histórias sobre pessoas comuns que acabam se envolvendo, sem querer, em crimes ou em situações de perigo. Histórias de medo e angústia, e de mistérios que nunca são suficientemente esclarecidos. 



(Edward Hopper, "Nighthawks", 1942) 


Por exemplo Deadline at Dawn (1944, sob o pseudônimo “William Irish”) um de seus romances mais típicos. Na Nova York indiferente e brutal, um rapaz conhece uma moça que trabalha num salão de dança. Ao longo de poucas horas, os dois descobrem que são da mesma cidadezinha do interior; que odeiam a metrópole; e tudo que queriam na vida era voltar para lá. Gostam um do outro. Confiam um no outro. Decidem voltar para lá, juntos. 
 
Então... acontece um crime e o rapaz é acusado. Os dois fogem, pela madrugada deserta, improvisando-se como detetives para descobrir quem cometeu aquele crime e limpar a barra do rapaz. Porque (bem à maneira de Woolrich) eles pactuam um “vamos-combinar” segundo o qual eles só conseguirão fugir se pegarem o primeiro ônibus ao amanhecer. Se não, estão perdidos. 



É uma história de corrida-contra-o-relógio. O livro inteiro transcorre ao longo de uma madrugada interminável; eles esbarram em acasos, beneficiam-se de coincidências, confundem-se sem necessidade, mas, bem ou mal, fazem o leitor torcer por eles, porque são ingênuos e sinceros, e merecem escapar daquele inferno. 
 
Os livros de Woolrich eram histórias de suspense sem o cerebralismo dos filmes de Hitchcock. Ele escrevia com a intuição, e seus enredos são às vezes desconjuntados, improváveis, implausíveis, sentimentais, mas sempre hipnóticos. 
 
E me lembrei também que Woolrich viveu quase a vida toda com a mãe, Claire, morando em hotéis. Era, segundo seu biógrafo Francis M. Nevins, um gay não-assumido; esta versão tem sido contestada. Teve um breve casamento, que não deu certo, com a filha de um produtor cinematográfico. A mãe lhe fez companhia; viveram juntos até que ela morreu, quando ele estava com mais de 50 anos. Daí em diante, sua vida virou uma espiral descendente de alcoolismo e doença. Morreu sozinho, alcoólico, com uma perna amputada, e tinha quase um milhão de dólares no banco. 
 
Uma tentativa de resgatar sua vida (muito pouco documentada) está neste artigo: 
 
https://crimereads.com/do-people-really-know-what-they-think-they-know-about-cornell-woolrich/
 
(Robert E. Howard)

 
Mais radical que ele foi Robert Howard, o criador de “Conan, o Bárbaro” e de uma obra imensa nos campos do terror, da ficção científica e da aventura. Howard também morava com a mãe, numa cidadezinha no interior do Texas. Escrevia com inspiração e fúria, tendo começado a publicar profissionalmente ainda muito novo. A mãe dele, Hester, era uma mulher culta, que lhe transmitiu o amor aos livros e o incentivou a escrever. Ela foi tuberculosa durante a maior parte de sua vida adulta; quando entrou em coma definitivo, em junho de 1936, Robert se matou com um tiro de revólver. Tinha trinta anos de idade. 
 
Isto me trouxe à lembrança o caso parecido, mas mais longevo, de Jorge Luis Borges.  Borges também morou com a mãe, D. Leonor Acevedo, que cuidou dele após a cegueira. Foi a mãe (que faleceu aos 99) quem o acompanhou em numerosas viagens internacionais. Culta, poliglota, voluntariosa, pela vida inteira ela tomou conta do filho cego, com orgulho e desafio. 
 
Borges teve um casamento breve e frustrado, entre 1967 e 1970, com Elsa Astete, uma socialite buenairense que foi sua namorada de juventude. Era uma relação nada-a-ver, condenada ao fracasso. Os amigos organizaram uma conspiração para separá-los e Borges voltou a morar com D. Leonor até a morte dela, quando ele já ia completar 75 anos. Conta-se que no seu velório uma amiga murmurou: “Coitada, faleceu sem ter completado os 100 anos.” E Borges respondeu: “Vejo que a senhora é adepta do sistema métrico decimal”. 
 


(Borges e D. Leonor Acevedo)

 
Borges, cego, precisava da companhia de alguém, e a timidez quase doentia sacrificou sua vida sentimental. A presença protetora da mãe o envolveu num casulo de autoridade e segurança,. Isto lhe permitiu viajar pelo mundo e aproveitar a fama tardia, que só lhe chegou após os 60 anos.
 
A lembrança de Borges me conduziu à lembrança de H. P. Lovecraft (1890-1937), outro escritor casmurro e crepuscular. Seu pai foi internado numa clínica psiquiátrica quando ele tinha três anos, e morreu quando ele estava com oito. O pequeno Howard foi criado na companhia da mãe e de duas tias, com muita dificuldades financeiras, que ele tentou suprir a partir da adolescência, fazendo vários trabalhos ligados à escrita e redação. (Embora afirmasse que detestava escrever à máquina.)   



(H. P. Lovecraft aos 25 anos)

 
Sua mãe foi também internada numa clínica quando ele estava com 29 anos, e morreu poucos anos depois. Lovecraft continuou a morar com as tias, mas teve um breve casamento com Sonia Greene, alguns anos mais velha que ele. O casamento foi atormentado por problemas financeiros e de saúde. Sonia conseguiu empregos que a obrigavam a viajar o tempo inteiro; os dois foram gradualmente se afastando, e dois anos depois se separaram. O escritor viveu na companhia da tias até falecer em 1937. 
 
E não vejo motivo para me esquecer do caso de Raymond Chandler, cuja pai abandonou o lar quando ele era bem pequeno. Isto teve uma consequência positiva. A mãe dele, Florence, era de origem irlandesa, e levou o menino para viver com sua família, que àquela altura estava fixada em Londres. Chandler estudou em bons colégios, e quando voltou para os EUA, já adulto, trouxe Florence para sua companhia. 
 
Viveram juntos mesmo quando ele começou um caso amoroso com a que viria a ser sua esposa para o resto da vida: Cissy, uma mulher muito bonita, culta, e bastante mais velha do que ele. E a mãe era ferozmente contra o casamento dos dois, pois Cissy era uma mulher divorciada. 


(Raymond and Cissy Chandler, em 1952)

 
Diz o biógrafo Tom Hiney:
 
A mãe de Chandler morreu finalmente em janeiro de 1924. A data de nascimento de Florence é desconhecida, mas tinha certamente menos de sessenta anos ao falecer. Seu filho tinha trinta e cinco, e estava começando a construir uma pequena fortuna para si. Ele e Cissy casaram duas semanas depois, em fevereiro de 1924.  Há quem sugira que Chandler nunca soube a verdadeira idade de sua esposa, e embora seja improvável que um homem que se tornaria autor de histórias de detetive deixasse de perceber discrepâncias nos documentos da própria mulher, Cissy certamente não aparentava cinquenta e seis anos em 1924. Não tendo tido filhos biológicos, ela mantinha uma silhueta de modelo, e, de acordo com os colegas de trabalho de Chandler na empresa Dabney’s, tinha a presença sexual de uma mulher de trinta anos. 
(Raymond Chandler: A Biography, cap. 2, trad. BT)
 
Não irei me estender aqui glosando teorias como o complexo de Édipo ou a síndrome de Peter Pan; deixo a tarefa para os mais fluentes em Psicologia. O que me interessa é entender de que modo a manutenção desse cordão umbilical simbólico, longe de prejudicar esses indivíduos, provavelmente os ajudou (imagino eu) a encontrar vazão para uma criatividade intelectual intensa, aliada a uma incerteza e instabilidade emocional para enfrentar a vida adulta. 
 
Cada um ao seu modo, é claro. Borges, por exemplo, era o menos prático dos homens; mas quisera eu ter a sagacidade profissional e o tino implacável de negociador de Raymond Chandler.  Ele tinha lá suas fragilidades, mas era capaz de botar no bolso os produtores de Hollywood e ganhar os salários mais altos de sua época, salários com os quais nenhum roteirista daquele tempo tinha sonhado. 
 
E ao mesmo tempo, quando lhe perguntavam se ele “era realizado como escritor”, Chandler, que vendia milhões de livros, dizia: “Gosto dos meus romances, mas lamento nunca ter escrito nada que pudesse mostrar com orgulho à minha mulher.” 
 
Escrever é uma tarefa aparentemente cômoda – basta ficar em casa digitando textos no teclado. Essa simplicidade logística, no entanto, bota todo o peso na extremidade oposta: o esforço para domesticar o tsunami mental do momento da escrita, composto de raciocínios, lembranças, emoções, sugestões verbais, memórias visuais, pedaços de frases, referências, associações de idéias... Como já disse alguém, “basta sentar na escrivaninha e abrir uma veia”. 
 
Há quem seja capaz, homem ou mulher, de cuidar sozinho de uma casa e construir uma obra literária; mas cada casa é um caso. Virginia Woolf dizia uma mulher precisava, para escrever, de um quarto só para si, e quinhentas libras anuais de renda. Agatha Christie escrevia à mão, em cadernos pautados, na mesa em que almoçava. 
 
Escritores de ficção são como qualquer outro trabalhador intelectual.  Precisam de períodos extensos de recolhimento e concentração. Frederik Pohl dizia preferir a madrugada porque não há interrupções nem distrações, “e é possível manter pensamentos longos e consecutivos”.  
 
Às vezes vivem sozinhos, às vezes com esposas (ou maridos) que servem de barreira para que não sejam interrompidos. Ou que trancam o talentoso num quarto e o obrigam a trabalhar, como a D. Mercedes casada com Gabriel Garcia Márquez. 
 
Quando é a mãe do romancista que procede assim, temos a tendência de deduzir daí uma infância artificialmente prolongada, uma atitude pouco masculina de quem refuga a guerra da vida adulta. Pode ter algo disto, sim. Mas cada família é feliz ou infeliz ao seu modo, e para quem olha à distância, depois que as pessoas de carne-e-osso viraram pó, o que conta é o resultado literário deixado por essa convivência – mesmo oblíqua, mesmo enviesada, mesmo pouco de acordo com O Modelo. 
 
Milton Nascimento e Caetano Veloso diziam que “qualquer maneira de amor vale a pena”; o poeta Mallarmé dizia que “tudo existe para resultar em livro”, e podemos pedir-lhes emprestados os conceitos para perguntar: Uma maneira de amor que resulta em tantos livros, será que não valeu a pena? 
 
 
 
 
 







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