quarta-feira, 7 de maio de 2025

5176) Quaderna e o Barroco Sertanejo (7.5.2025)






 
Ontem, dia 6 de maio, fiz uma palestra na Academia Brasileira de Letras, abrindo um ciclo de quatro conferências dedicadas à obra de Ariano Suassuna. Foi um convite de Heloísa Teixeira, recentemente falecida, a quem dedico esta minha participação. Agradeço a Antonio Carlos Secchin e Joaquim Falcão, organizadores do evento. E a todos os amigos que se dispuseram a assistir à conversa, ao vivo ou pela Internet. Como algumas pessoas me pediram o texto, vai ele aqui abaixo. Um pouco longo (foi uma palestra de 40 minutos), mas, paciência, é o que foi. 
 
 
O Barroco Sertanejo de Ariano Suassuna
 
“A obra de Ariano Suassuna, como artista e como agitador cultural, se espalha por muitas linguagens: o romance, o teatro, a poesia, as artes plásticas, a música, o ensaio. Ela lembra um vitral de igreja da Idade Média, onde cada segmento tem uma cor diferente e um formato próprio, mas essa aparente ausência-de-parentesco deixa de existir quando percebemos como todos se encaixam num formato geral. 
 
Farei alguns comentários sobre o “Ciclo da Pedra do Reino”, que em princípio inclui três romances: 
 
-- Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue de Vai-e-Volta, 
-- Ao Sol da Onça Caetana 
-- As Infâncias de Quaderna. 
 
Ciclo deixado incompleto pelo autor, embora haja frequentes alusões a ele na obra póstuma Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores. 
 
O “Ciclo da Pedra do Reino” tem como narrador, protagonista e mestre-de-folguedo geral Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, alter-ego do autor, e é dele que quero me servir como guia neste percurso. 
 
Quaderna é talvez menos esperto do que João Grilo, menos simpático do que Chicó, menos humano que o Joaquim Simão da Farsa da Boa Preguiça
 
É um personagem complexo, contraditório, que ora se exibe excessivamente diante do leitor, falando de si próprio o tempo inteiro, ora se disfarça e se esconde por trás da própria eloquência – que é extraordinária. E da própria cara-de-pau, que não tem limites. 
 
Quaderna é um caso exemplar de “narrador não-confiável”, recurso que o romance moderno – o romance dos últimos 100 ou 120 anos – já utilizou de mil formas. E um dos seus recursos mais insistentes, e mais brilhantes, é o de afirmar que no Sertão todas as verdades são reescritas, todos os valores são questionados, toda a tradição precisa de uma releitura. 
 
Ele não é confiável porque sua memória é cavalgada pela sua imaginação, e a sua missão de revelar verdades ocultas sobre o passado do Sertão, da Paraíba e do Brasil vem acompanhada o tempo inteiro pela tentação irresistível de mentir – não necessariamente para enganar alguém, mas mentir por amor à arte. 
 
Ariano Suassuna comenta a criação deste personagem: 
 
Quaderna não existia, a princípio. Quando comecei a escrever, o livro era narrado na terceira pessoa e o personagem principal era Sinésio.  Algo, porém, não estava bem: era a minha personalidade que influenciava o livro. Criei então uma “persona”: começou Quaderna a ser o narrador. Mas, aí, sem interferência da minha vontade, ele começou também a crescer. Tentei impedi-lo, mas ele recusou. E hoje é o personagem principal. 
(“Diário de Pernambuco”, 22 de maio de 1977)
 
Como dizia Oscar Wilde, se quisermos saber quem é de fato alguém, basta dar-lhe uma máscara. Mascarada, julgando-se invisível, a pessoa irá revelar sua verdadeira face. 
 
Quaderna tornou-se um duende e arrebatou as rédeas do romance. A tal ponto que nas décadas seguintes, Ariano Suassuna, criticado por tais ou tais opiniões, tais ou tais expressões sobre algum tema, era forçado a dizer: “Sim, eu escrevi, está no livro, mas quem pensa assim não sou eu – é Quaderna”. 
 
As definições de “narrador não-confiável” estão sendo sempre re-atualizadas. 
 
Quaderna convinha a Ariano porque proporcionava ao Autor o disfarce de uma máscara arlequinal, carnavalesca, meio grotesca, meio ingênua, capaz de dizer horrores sem bater a pestana, capaz de trazer para o território do Romance Moderno muitos elementos do Romance Picaresco dos séculos 17 e 18. 
 
O romance picaresco foi a contra-face do Barroco Europeu, que às vezes tendemos a identificar apenas com sua vertente solar, monárquica, eclesiástica, das artes sacras ou eruditas. Um Barroco que, transposto para o Brasil, produziu sínteses admiráveis como a obra do Aleijadinho e a prosa do Padre António Vieira. 
 
Mas produziu também versões plebéias como a poesia de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, frequentador de casas de tavolagem, avô e pai de toda uma poética fescenina que se escoou em nossos tempos para os folhetos populares e a tradição oral sertaneja. 
 
Os folhetos de cordel que Quaderna, no Romance da Pedra do Reino, classifica, sem muitas formalidades acadêmicas, como os “folhetos de safadeza e putaria”. 
 
O Barroco que herdamos dos povos ibéricos já trazia consigo esta contradição, aparentemente inconciliável, entre os papas e os reis, de um lado, e os mendigos e poetas-de-rua, do outro. 
 
Na sua tese de livre-docência “A Onça Castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira” (1976) ele volta a recensear estas antinomias – essa fascinação barroca pela aproximação dos opostos – ao descrever a “tendência assimiladora e unificadora de contrários” do povo brasileiro: 
 
...o espírito mágico e fantástico complementado pelo realismo crítico e satírico; metamorfose da florescência, e da decomposição; cotidiano e quimera; a presença do dionisíaco buscando o gume contido e a garra da forma despojada do apolíneo; violência e mau-gosto do popular e refinamento do erudito; o épico, e a introspecção individual, chegando esta às vezes à idolatria do Eu; o lirismo personalista e o social coletivo; as convenções e a festa; o Belo e o Feio; espírito profético e comportamento orgiástico; o vegetal da Mata e o deserto do Sertão; o Trágico e o Cômico; a aldeia e o mundo. 
 
“Barroco Sertanejo”, aliás, é uma expressão que não me lembro de ser usada por Quaderna na Pedra do Reino, mas emprego aqui por um sentido aproximativo com o espírito do personagem. 
 
Afinal, ele próprio afirma ter sido expulso do Seminário da Parahyba devido a sua invenção de um “Catolicismo Sertanejo”, mais identificado com a nossa realidade. 
 
E em seu depoimento à justiça, Quaderna explica: 
 
Modéstia à parte, não existe, no mundo, religião mais completa que a minha! (...) 
 
Veja o senhor: o Judaísmo e o Cristianismo dos santos, mártires e profetas, levam ao Céu, mas são religiões severas e incômodas como o Diabo! O Maometanismo, pelo contrário, é uma religião deleitosa: permite que a gente mate os inimigos e tenha muitas mulheres, que coma e beba o que quiser. Em compensação, é danada para levar ao Inferno!  
 
A Igreja Católico-Sertaneja é a única religião do mundo que é bastante “judaica e cristã” para levar ao Céu e, ao mesmo tempo, bastante “moura” para nos permitir, aqui, logo, os maiores e melhores prazeres que podemos gozar nesse mundo velho de meu Deus! 
(RPR, folheto 52, “O Almoço do Profeta”) 
 
E é preciso lembrar que a expulsão do Seminário da Parahyba se deu quando o jovem Quaderna revelou ao seu superior que, no Catolicismo Sertanejo, a Santíssima Trindade não tinha três, mas cinco pessoas: o Pai, o Filho, o Espírito Santo, Nossa Senhora e o Diabo. 
 
Esse é apenas um exemplo do furor revisionista com que o Sertão de Quaderna desconstrói e reformula tudo que lhe chega da Europa, da África e do resto do mundo. No livro, ele se apresenta, às vezes, por ser charadista emérito, como Quaderna, o Decifrador. Mas poderia muito bem se intitular Quaderna, o Desconstruidor
 
Quaderna é um indivíduo que não vê a contradição como um conflito, e sim como uma cópula. 

Ariano tinha entre seus clássicos espanhóis preferidos o Lazarillo de Tormes, história de um mendigo espertalhão que é um antepassado distante de Cancão de Fogo e de João Grilo; e também o onipresente Dom Quixote da La Mancha
 
Quaderna vive a contradição de ser ao mesmo tempo um dom-quixote e um sancho-pança. Num momento ele é heróico, sonhador, arrebatado por devaneios de grandeza literária e de reconhecimento por parte dos nobres e fidalgos; no momento seguinte, apanhado em alguma trambicagem de menor importância, ele se torna pragmático, manipulador, interesseiro, eloquente em causa própria, com algo de camponês desconfiado, e com a conversa bonita de camelô ou de cigano. 
 
Ele se considera herdeiro do Império do Brasil, porque é bisneto de Dom João, o Execrável, o homem que – na vida real – em 1838 comandou, ao longo de uma noite interminável, a chacina da Pedra do Reino, na região de Belmonte, degolando dezenas de pessoas, inclusive mulheres e crianças. 
 
É um império de esfarrapados, um império de gente delirante escondida nas brenhas e nas furnas. 

Ariano Suassuna reproduz em seu livro o escudo heráldico dos Quadernas, escudo “esquartelado”, que apresenta duas divisões ao meio, uma horizontal e outra vertical. E eu me permito ver nessa figura geométrica a cruz, o zero-cartesiano da contradição social de Quaderna. 
 
O corte horizontal divide o Brasil em duas metades: Brasil de cima e Brasil de baixo, como dizia Patativa do Assaré. O Brasil rico e o Brasil pobre. O Brasil fidalgo e o Brasil plebeu. Uma contradição que poderia ser totalmente inconciliável – se não fosse o fato de que Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna é as duas coisas ao mesmo tempo. 
 
Ele se considera fidalgo porque é bisneto do Imperador da Pedra do Reino, que ele considera um monarca mais legítimo do que “a monarquia falsificada dos Braganças”.  E, mais do que herdeiro de um império, ele se sente um aristocrata das letras, um intelectual desperdiçado naquela região inóspita de uma Paraíba que não compreende o seu talento. 
 
E sendo aristocrata das letras ele não poderia deixar de fundar, com seus amigos, a Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba. 



(Irandhir Santos, "Quaderna", na minissérie A Pedra do Reino)


E ao mesmo tempo que fidalgo, Quaderna sabe que é pobre, porque vive cheio de dívidas, mora numa casa que ganhou de herança de uma tia, e sobrevive de um emprego mixuruca na prefeitura de Taperoá. Além de administrar uma casa-de-tolerância local, a “Távola Redonda”. 
 
E assim, no seu delírio, Quaderna salta de fidalgo para plebeu e vice-versa no espaço de uma frase e de uma respiração. 
 
E existe a outra divisão, no escudo heráldico dos Quaderna. O traço vertical que o divide politicamente em esquerda e direita. 
 
De modo, que com essa “cruz” que corta e recorta seu escudo, Quaderna vê-se magicamente possuidor de uma fisionomia quaternária. Ao sabor dos acontecimentos, e de para onde o vento sopra, ele pode se comportar como um fidalgo de direita... um fidalgo de esquerda... um pobre de esquerda... e um pobre de direita. 
 
Essa divisão é colocada de modo explícito no livro através de dois personagens, os mentores de Quaderna: um típico nordestino de direita, o professor Samuel, e um típico nordestino de esquerda, o professor Clemente. 
 
São os dois mestres de Quaderna, eternamente em conflito, eternamente em choque, esgrimindo argumentos que vão dos mais fundamentados aos mais absurdos. 
 
Samuel Wand’Ernes, 60 anos, louro arruivado, olhos azuis, católico, poeta, descendente de família fidalga de Pernambuco. Tem verdadeiro horror ao povo brasileiro, a quem considera sujo, feio, primitivo e mal-educado. 
 
Clemente Hará de Ravasco Anvérsio, 60 anos, negro com sangue de índio tapuia, filósofo, historiador, ateu, anticlerical, admirador de Zumbi e de Antonio Conselheiro. 
 
Os dois são amigos, e os dois são orientadores de Quaderna, que desta forma se vê coagido a ser alternadamente simpatizante da Direita e simpatizante da Esquerda, não por evolução ideológica – mas pelas conveniências do momento. 
 
Direita e Esquerda, assim, juntam-se a outras tradições européias que mal põem o pé no sertão de Taperoá veem-se sequestradas por esse trio: arrebatadas, canibalizadas, viradas pelo avesso, decompostas e recompostas pelas conveniências do momento. Um trio de intelectuais de província, adeptos do autodidatismo, da bricolagem, do ecletismo e da re-interpretação.
 
Neste trecho, é Quaderna quem comenta com o leitor, em voz baixa, e à distância, o comportamento dos seus dois mestres: 
 
Tomavam, furiosamente, partido em tudo. A Sociologia era de Esquerda, e a Literatura fortemente suspeita de direitismo. O “riso satírico e a realidade” eram de Esquerda, a “seriedade monolítica e o sonho”, de Direita. A Prosa era de Esquerda e a Poesia de Direita; mas, mesmo ainda dentro do campo da Poesia, tomavam partido, pois a lírica era considerada “pessoal e subjetiva, e portanto direitista e reacionária”; enquanto que a satírica, “social e moralizante, didática” era considerada progressista e de Esquerda. 
 
A Natureza, com “a luta pela vida, dura e cruel, com a selvageria, a desordem, a sobrevivência do mais forte e as marcas que ainda guardava do Caos, era de direita; a Cidade, “organizada, baseada no progresso, no trabalho e na máquina”, era de Esquerda. 
 
Do ponto de vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do outro, era de Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e revoltado, de Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo masculino, sóbrio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino, com o amor pelos tecidos e pelas jóias, era de Direita. 
 
E assim por diante, em tudo e por tudo. 
(RPR, Folheto 39, “O Cordão Azul e o Cordão Encarnado”)
 
Essa re-escritura de idéias alheias, de idéias “importadas”, ganha um sabor literário especial quando Quaderna, esse narrador não-confiável, começa a teorizar sobre o seu modo de pensar, de agir e de escrever. 




(Ariano Suassuna, década de 1970)

Ariano dizia que morou quinze anos no interior da Paraíba e depois 70 anos no Recife, mas só escrevia sobre o Sertão. Somente o interior lhe servia de inspiração – o interior, e a Taperoá mítica que ele reconstruiu em memória e em literatura. 
 
Quaderna, em seus monólogos com o leitor, chama seu jeito de escrever de “Estilo Régio”. Um estilo régio, sim, estilo aristocrático, erudito, digno dos reis. Mas, ao mesmo tempo, um trocadilho com “estilo regional”, uma expressão que ele considerava incômoda, e procurava afastar de si. E a afastava assim – com um trocadilho. 
 
Numa afirmação muitas vezes repetida, ao vivo e por escrito, Suassuna dizia: 
 
Não me considero um autor regionalista, porque ao meu ver o Regionalismo é uma espécie de Naturalismo, e isso não me agrada. O que eu quero colocar nos meus livros é uma realidade transfigurada. 
 
Como é o estilo régio? 
 
No Romance da Pedra do Reino, Quaderna, preso na cadeia de Taperoá, suspeito de vários crimes, está sendo interrogado pelo Juiz Corregedor que veio da capital do Estado. 
 
-- Senhor Quaderna, tenho observado que o senhor, de vez em quando, dá para falar difícil, o que perturba um pouco a clareza do depoimento! 
 
-- É uma questão de estilo, Sr. Corregedor, uma questão epopéica! Quando eu tirar as certidões, quero encontrar o estilo da minha Obra pelo menos já encaminhado! Além disso, Samuel, segundo Clemente, adota “o estilo rapão-ranhoso de cristais e joiarias hermético-esmeráldicas da Direita”. Já Clemente, segundo Samuel, adota “o estilo raso-circundante, raposo e afoscado da Esquerda”. 
 
“Eu fundi os dois, criando o estilo genial, ou régio, o estilo raposo-esmeráldico e real-hermético dos Monarquistas de Esquerda”. 
 
Quaderna é um mestre da conversa ao pé do ouvido, da conciliação, da aproximação partidária, da costura de panos incompatíveis, da negociação permanente baseada na capacidade de reescrever não apenas a História com H maiúsculo, mas a Literatura, com todas as letras. 
 
Seu estilo régio herdou em grande parte o entusiasmo de seu mestre Samuel, o direitista, cujo nacionalismo vai até o ponto de considerar a literatura brasileira a única literatura real, e todas as outras como meros afluentes ou desvios dela. 
 
Samuel Wand’Ernes é um personagem que mereceria uma estátua no saguão da sede do Sindicato dos Tradutores, ou pelo menos um busto, ou se não um busto uma placa. Seu nacionalismo o faz considerar que quando uma obra estrangeira é traduzida no Brasil, a versão brasileira passa a ser a obra original, e a outra uma simples consequência antecipada. 
 
Numa discussão com o Prof. Clemente, Samuel assim justifica sua posição: 
 
-- Quero lhe explicar que, quando um poeta brasileiro ou português traduz uma obra estrangeira, para mim o original fica sendo o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso!  Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele!  Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante traduziu para o italiano!” 
(RPR, Folheto 77, “Cantar do Fidalgo Pobre”)
 
É a Europa reescrita pelo Sertão, esse Sertão faminto de novidades, faminto das carnes tenras dos seus invasores. 
 
O estilo régio de Quaderna, ao longo de todo o romance, se aplica em reescrever não apenas poemas de autores estrangeiros, mas também de autores brasileiros que Quaderna considera insuficientemente sertanejos, insuficientemente régios. 
 
Praticamente todos os poemas citados no romance são versões alteradas dos poemas originais. Quaderna interfere em poemas de Castro Alves, Olavo Bilac, Raimundo Corrêa, Leandro Gomes de Barros, Álvares de Azevedo, Jerônimo do Junqueiro. 
 
Ariano era um nacionalista empedernido, ufanista, retoricamente patriótico?  Não acho.  Ele gostava era de equilibrar os pratos da balança, que sempre via pender para o lado estadunidense, para o lado europeu, para o lado do que ele chamava “os povos frios do hemisfério norte”. 
 
E mesmo quando pensava na Europa, essa Europa distante e fidalga de quem somos até hoje uma espécie de filhos bastardos, ele se identificava com a cultura latina: com a poesia portuguesa, com o teatro espanhol, com o romance francês, com o cinema italiano. 
 
Daí que ele parecesse incorporar a si qualquer aventura de “estilo régio” trazendo para nossa sardinha a brasa do reconhecimento literário. 
 
Um dos livros preferidos de Ariano, livro de adolescência, foi o clássico As Minas do Rei Salomão , romance de aventuras publicado em 1885 por H. Rider Haggard, autor de Ela, Allan Quatermain e vários outros. É um dos romances mais célebres da literatura aventureira do colonialismo inglês na África. 
 
Ariano reportava-se muitas vezes a esse livro, que foi traduzido em Portugal por Eça de Queiroz. E traduzido de tal maneira que até hoje aparece nas coleções de Obras Completas de Eça! 
 
O escritor português tomou várias liberdades estilísticas e adaptou nomes de personagens; impôs seu estilo à narrativa original de tal modo que numa de suas edições, pela Ed. Livros do Brasil, de Lisboa, lê-se no texto da orelha este comentário que não posso deixar de ver como um elogio a um “estilo régio” lusitano: 
 
Mais do que uma tradução, Eça efetuou uma verdadeira transposição em que a sua liberdade resultou numa criação original que encanta e seduz.  Deste modo, pela pena de um grande escritor, Rider Haggard alcançou uma notoriedade que de outro modo só dificilmente alcançaria ou que não chegaria mesmo a atingir.  O génio de Eça de Queiroz interveio decisivamente nesta obra em que a parte do tradutor é importantíssima, pois que lhe confere um toque de magia e graça.  A aventura ganha, sob as mãos de Eça de Queiroz, novas e insuspeitadas dimensões, tornando-se, afinal, um verdadeiro clássico da nossa língua. 
 
Como se vê, o mundo é assim. Ariano não inventa.  Ariano transfigura. 
 
Seu modo de criar prosa de ficção é apossar-se do tema, da idéia, da motivação vital que o leva à escrita. Sem essa fagulha inicial que lhe desperta o impulso de escrever, nada acontece. 
 
Somente esse tipo de impulso, quase um gesto desesperado de ajustar contas com a vida, o teria levado à empresa da criação do “Ciclo da Pedra do Reino”. 
 
Para avaliar melhor o processo de criação desse Ciclo, basta comparar os períodos de escrita (que Suassuna registra meticulosamente no final de cada obra) dos três livros. 
 
Romance da Pedra do Reino: 
19 de julho de 1958 a 9 de outubro de 1970 (cerca de doze anos e três meses). 
 
Ao Sol da Onça Caetana: 15 de novembro de 1975 a 25 de abril de 1976 (pouco mais de cinco meses). 
 
As Infâncias de Quaderna: 2 de maio de 1976 a 19 de junho de 1977 (cerca de um ano e um mês) . 
 
O que determina as semelhanças e diferenças estilísticas entre estas obras?  Eu diria que o primeiro romance foi escrito pensando exatamente em sua publicação em forma de livro. O que aconteceu, com enorme sucesso de crítica e de público. 
 
No segundo e terceiro volumes, o modo de produção literário se inverteu. Estes dois livros foram publicados em folhetins semanais no “Diário de Pernambuco”. 
 
O modo folhetinesco de escritura é cruel, pela imposição da periodicidade. Com ou sem inspiração, é preciso mandar para a gráfica “x” laudas por semana, porque no domingo o jornal vai estar na banca. 
 
Era o método de produção de Alexandre Dumas, de Charles Dickens, de Dostoiévsky, e Ariano, leitor de folhetins de aventuras nos jornais de sua infância, talvez tenha se dedicado a isto com um misto de exaltação e terror. 
 
Terror porque seu método pessoal de escrita era lento, meticuloso. Escrever à mão. Rasurar, consertar, substituir. Passar a limpo na máquina de escrever. Revisar mais uma vez as laudas datilografadas. E fazer tudo isto correndo contra o relógio e o calendário. 


Os dois últimos livros, somados, constituem uma massa de texto comparável à do primeiro. O “modo folhetinesco” acelerou a produção do autor, que em apenas um ano e sete meses produziu o equivalente ao que produzira em doze anos sem a pressão da periodicidade. 
 
Ariano fez isto com exaltação, diante da consciência de ter descoberto uma história, e ter descoberto uma voz com que contá-la – e nem todo escritor tem estas duas sortes ao mesmo tempo. 
 
É curioso notar que todos estes elementos já estavam presentes no primeiro livro da série, escrito para ser livro, mas já concebido com uma estrutura de folhetim semanal, uma silhueta de folhetim. 
 
Porque isso provavelmente não correspondia, nesta primeira fase, a uma imposição editorial externa – e sim a um desejo interior. O desejo de um garoto que leu folhetins quando era pequeno, e que agora, adulto, cavaleiro em si, detentor de algum poder, resolve reviver aquela experiência, só que agora na outra margem do rio. 
 
E a história vai se criando folha por folha, a cada semana, produzindo esse tipo raro de literatura que depende totalmente do papel, da tinta, da rotativa – mas não deixa de ser uma literatura oral. 
 
Ariano Suassuna pratica uma literatura oral no sentido de produzir um texto de onde nos vem, incessantemente, a impressão de uma voz que nos está contando aquilo tudo. Não a voz impessoal de um narrador onisciente e invisível, mas a voz às vezes rouca, às vezes apressada, às vezes indolente, de um contador de histórias num café do Cairo, de um griot africano, de um vendedor de folhetos de cordel na Feira de São Cristóvão ou na de Campina Grande. 
 
Patrick Mahony, em Freud como escritor, propõe uma interpretação do estilo barroco na literatura. Uma interpretação que descreve bem um dos traços principais do Ciclo da Pedra do Reino: 
 
“O estilo barroco se adapta ao movimento de um espírito que descobre a verdade enquanto avança, pensa enquanto escreve. (...) Pensamento pensante (“pensée pensante”), em oposição ao pensamento pensado (“pensée pensée”).
(Patrick Mahony, “Freud como Escritor”)
 
O que é este “pensamento pensante”, que pensa enquanto escreve? 
 
É o repente. É a improvisação dos repentistas, dos cantadores de viola sentados em duas cadeiras no pé da parede, dos emboladores de coco balançando seus ganzás no Recife, na Praça do Diário, em frente ao jornal onde Ariano publicava seus folhetins. 
 
É o improviso de cordelistas como João Martins de Athayde ou José Soares, “o Poeta Repórter”, escrevendo suas sextilhas com lápis e papel ao pé do rádio que transmitia as Breaking News do momento: morte de Lampião, suicídio de Getúlio, vitória da Seleção Brasileira. E na manhã seguinte tinha folheto impresso sendo vendido na rua. 
 
A mais difícil das sínteses a que Ariano se propõe é a de ser escritor de literatura oral, com a sua índole barroca de aproximação dos contrários. 
 
Ariano consegue preservar, num texto em prosa escrito, reescrito e revisado, esta sensação de vertigem que só a palavra falada nos proporciona, só a palavra gritada “à queima-pele”, como no teatro. A palavra viva, com a qual todos nós, sem exceção, somos repentistas e improvisamos o dia todo, a vida inteira. 
 
São raros os autores que, como Ariano Suassuna, são capazes de pegar esse passarinho vivo e prendê-lo vivo na página. 
 
E ele o faz com a simplicidade de quem se habituou a aproximar polos opostos, e que um dia se auto-definiu com esta descrição, com que encerro a minha fala: 
 
Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta.” 
 
 

 
(Ariano e Zélia Suassuna -- foto Gustavo Moura)
 
 
 
 
 




3 comentários:

  1. Vi a conferência no YouTube, muito instrutiva e necessária.

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  2. Eita... Besta cigana!!! Esse Nordeste mágico de Ariano... É um Nordeste (im)possível l!!!

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  3. SANHA DE SONHADOR

    Quando estiver retirado,
    Vou percorrer o sertão.
    "Tale e quale" um renegado
    Sem rumo, nem direção.
    Vou passar entre espinhos
    Vou percorrer mil caminhos
    Sem deixar rastros no chão.

    JNS - 01.05.25

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