segunda-feira, 21 de outubro de 2024

5114) A Tradução e a arte do arranjo (21.10.2024)

 


A música pode nos servir como termo de comparação para certas abordagens na tradução de poesia. Sem que haja critério de qualidade entre esses tipos; um não é superior ao outro, tudo depende do resultado.
 
Dois modelos possíveis são: o cover e o novo arranjo.
 
Fazer cover de uma canção é repeti-la, gravá-la de novo, aproveitar o fato de que é uma obra conhecida, apreciada, e levá-la para o julgamento de um público que muitas vezes conhece o original. Um público que sabe que a canção mais recente é uma mera reprodução de uma canção antiga; mais ou menos como ocorre na tradução de um poema.
 
Acontece que o cover exageradamente fiel ao original é zoado às vezes pelos ouvintes. Chamam de ”gravação karaokê”. “Fulano fez um cover karaokê da música da Banda Tal, é exatamente a mesma instrumentação, com os mesmos timbres, mesmo tom, mesmo andamento, mesmos solos, e somente a voz dele por cima.”
 
Isso é bom? É ruim? Tem gosto pra tudo. Alguém se lembra da banda Os Carbonos, que reproduzia tintim por tintim os arranjos de canções famosas?  É o que muitos “conjuntos de baile” tentam fazer.
 
Isto é excesso de fidelidade, ou é pegar carona no talento criativo alheio e simplesmente copiar seus resultados?
 
Isto pode ser considerado parecido com o que um tradutor faz? Afinal de contas, um tradutor se propõe a criar o menos possível, e tentar de todas as maneiras reproduzir os achados e as invenções do original. O principal álibi do tradutor é o fato de estar trazendo para o público um poema a que o público jamais teria acesso, porque o poema original (por exemplo) é em japonês ou árabe.
 
E nem vou entrar na selva espinhosa das “versões (letras) de músicas estrangeiras”. Estou pensando no lado musical, simplesmente. Se alguém regrava uma música já existente, o que deve predominar na sonoridade resultante? A semelhança com o original? A novidade na interpretação?
 
E é aqui que entramos na segunda atitude: a de criar um “novo arranjo”.




Fazer um novo arranjo de uma canção é algo que está de certo modo implícito no trabalho de fazer um cover, mas vai um pouquinho mais adiante. Não pretende ser uma mera cópia. Tenta fazer (como se diz tanto no meio musical) uma “releitura” da música de Fulano. Uma interpretação nova. Colocar nela uma informação nova que antes não existia ali.
 
Daí uma distinção tão usada no jargão musical – a distinção entre cantor e intérprete. “Fulana de Tal é uma grande cantora, mas não é somente isso – ela é uma intérprete, ela nos faz ver a canção de outra maneira, com outros olhos, outra sensibilidade.”  Veja-se como a palavra “intérprete” tem esas duas conotações: alguém que canta músicas de uma maneira muito pessoal, e alguém que traduz falas de uma língua para outra.
 
Cada uma destas atitudes pode ir até limites extremos, e tender até para a caricatura.
 
Quem faz um novo arranjo para uma canção alheia está buscando espaço para criar dentro de algo que foi criado por outra pessoa. (O tradutor literário tem esse direito?  Essa liberdade?  Esse dever?)




Em casos assim, o arranjador musical não pode, ou não quer, repetir o que foi feito na música que está regravando. Ele quer escolher algum elemento presente dela e realçá-lo, expandi-lo... e descartar outros elementos que não lhe interessam.
 
Um tradutor de poesia tem liberdade para agir assim?
 
Na acomodação ao leito-de-Procusto da métrica e da rima, um tradutor tem que descartar muita coisa do original ao longo do caminho.  Ninguém se queixa. Métrica e rima constituem um dogma intocável em certas escolas poéticas. Têm que ser obedecidas a qualquer custo.
 
Ou talvez nem tanto: podemos ver métrica e rima como um desafio a mais, um problema excitante (e divertido) a mais. Um sarrafo colocado mais alto – e muitas vezes vale a pena dispensar algo para ter o prazer dessa tentativa.
 
Este critério, porém, tem que valer também para outros tipos de sarrafo. Se o que me interessa mais, ao conceber este novo arranjo (=tradução) é o jogo de idéias do original, posso fazer esta experiência, como um maestro-arranjador que diz: “Vou pegar esta canção, dispensar a letra, os versos, e fazer um arranjo puramente orquestral, intrumental.”
 
Músicos fazem isso o tempo todo, e ninguém chama de “mutilação do original”. É uma leitura – e uma leitura tão pessoal e única que deixa imediatamente clara a possibilidade, e a necessidade, de muitas outras leituras diferentes, tão pessoais e únicas quanto aquela.
 
Esta receita, esta fórmula do “arranjo novo” será então uma regra impositiva para todas as traduções? De maneira alguma. É um modelo que pode ser tentado em alguns casos, sempre de acordo com os recursos do tradutor, e temperado pelo seu bom senso.




Veja-se como exemplo, até banal, as numerosas traduções em prosa da Ilíada, da Odisséia, de outros clássicos. Esses tradutores estão privilegiando a narrativa, e abrindo mão do aspecto formal mais característico dessa poética: o verso, o hexâmetro.
 
Para manter o verso, a maioria dos tradutores corta e recorta a narrativa a cada passo. Outro tradutor pode se sentir no direito de desconstruir o verso e dar relevo à narrativa.
 
Um caso semelhante é o de muitas traduções do poema The Raven de Edgar Allan Poe. Um dos elementos essenciais do “DNA” deste poema é a disposição de suas estrofes, e a posição das rimas, inclusive de rimas internas. É um artesanato cuja originalidade e efeito são orgulhosamente reivindicados por Poe em seu famoso ensaio “A Psicologia da Composição”.
 
Ora, muitos tradutores abrem mãos disto e traduzem “O Corvo" com concepções estróficas e métricas completamente distintas. Emílio de Menezes e Benedicto Lopes optam por traduzi-lo em uma sequência de sonetos em decassílabos. Poe, que tinha pavor de ser enterrado vivo, terá se revirado no túmulo?




Um levantamento cuidadoso dessas versões foi feito por Cláudio Weber Abramo no livro O Corvo – gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe (São Paulo: Ed. Hedra, 2011), onde ele dá numerosos exemplos de como os tradutores não hesitam em recorrer a infidelidades semânticas para poderem manter a fidelidade da métrica, da melopéia.
 
É uma encruzilhada tradutória onde, como os cantores de blues, o tradutor acaba vendendo a alma ao diabo para poder mostrar seu poema em paz. São dois diabos, na verdade, cada um chamando-o, com promessas tentadoras, para um eixo verbal diferente.
 
Abramo  faz muitos reparos às traduções de “O Corvo” por Machado de Assis  e por Fernando Pessoa, dois figurões merecidamente ilustres, e eu concordo com os seus reparos. Ele observa (no capítulo “Uma infelicidade machadiana”) que Machado não traduziu o original inglês, e sim a versão francesa de Baudelaire, o que se depreende “... da ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras nos mesmíssimos lugares das traduções de um e de outro”. Ele acrescenta que Machado “altera o desenho rítmico e melódico do poema original, quebrando os versos em dois, reduzindo em uma unidade os blocos rítmicos principais de cada estrofe (são onze em Poe, dez nele).”




A tradução de Fernando Pessoa (diz Abramo) tentou replicar a musicalidade do original, mas baseando-se numa contradição (pág. 106): “o emprego  de palavras curtas e idéias sintéticas – tudo o que o inglês tem por excelência e o português, também muito caracteristicamente, não tem”. Eu diria, aliás, que esse é o limite mais crucial para quem traduz poesia de um idioma tão monossilábico e percussivo quanto o inglês para um idioma tão polissilábico e ondulatório quanto o nosso.
 
Voltamos, no entanto, à mesma crossroads anterior: deve-se ser fiel ao som, ou ser fiel ao sentido?
 
Surge uma voz e um voto de peso nesta discussão: o de Vladimir Nabokov, mais que um tradutor: um escritor bilingue. O autor de Fogo Pálido se insurgiu com as traduções anglófonas do clássico poema de Púchkin, o Eugene Oniégin (1837), poema totalmente construído com sonetos, estrofes (que ficaram conhecidas como “the Onegin stanzas”) cujas rimas seguem este padrão: ABAB-CCDD-EFFEGG.




Em seu indispensável Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas Hofstadter dedica dois longos e exaltados capítulos (o 8 e o 9) à discussão do que podemos chamar aqui “a Heresia Nabokoviana”. Porque Nabokov teve a pachorra de escrever uma espécie de panfleto descendo a chibata nas traduções em inglês do poema: James Falen, Walter Arndt, Sir Charles Johnson, Oliver Elton, etc.; e propõe uma tradução rigorosamente semântica (diz ele) do poema. Em prosa.
 
A discussão é comprida e fascinante. Hofstadter, mesmo tratando Nabokov com o máximo respeito, horroriza-se com a idéia de que rima e métrica podem ir para o espaço sem prejuízo visível. (O livro de Hofstadter, aliás, tem como subtítulo: “In Praise of the Music of Language”). Mas ele transcreve os argumentos de Nabokov, que diz:
 
Pode um poema como Eugene Onegin ser traduzido eficazmente com a manutenção das rimas? A resposta, naturalmente, é que não. Reproduzir as rimas e traduzir o poema inteiro, literalmente, é matematicamente impossível. (...) É no momento em que o tradutor se dispõe a reproduzir o “espírito”, e não o mero sentido do texto, que ele começa a traduzir o autor. Ao transportar o poema de Pushkin para o meu inglês, eu sacrifiquei, em benefício da completude do significado, todos os elementos formais, inclusive o ritmo iâmbico onde quer que mantê-lo implicasse em prejudicar a fidelidade. Em favor desta minha idéia de literalismo, sacrifiquei tudo: elegância, eufonia, clareza, bom gosto, usos modernos, e mesmo a gramática – tudo que esses mimetizadores afetados prezam mais do que a verdade.
(pág. 258-259, trad. BT)
 
Nabokov era do tipo que esfrega as mãos de contentamento quando enxerga no horizonte a poeira de uma polêmica que se aproxima.



Para mim, o que o autor de Lolita pretendia era fazer um “novo arranjo” para o poema de Puchkin, um arranjo valorizando o que ele considerava essencial. A solução dele é a melhor? Hofstadter não acha, e dedica longas páginas comparando estrofes inteiras traduzidas em verso e os mesmos trechos traduzidos com o “literalismo” nabokoviano – que sempre saem perdendo na comparação, para Hofstadter (e para mim também).
 
Enfim – existe, enraizada em nossa cultura tradutória atual, a neurose da “fidelidade”, da busca de reprodução do máximo possível dos efeitos produzidos no original. Muito mais a tentativa de uma regravação cover do que um novo arranjo.
 
E na transversal da encruzilhada, é claro, outro diabinho solerte nos convida a um trabalho em que o texto original seja o ponto de partida para outro texto que, sem alegar e sem procurar “fidelidade”, busque nesse original alguma inspiração, proponha uma expansão, alguma paráfrase, revele entrelinhas latentes no original... Isso não é tradução? Não há problema: inventa-se outro nome, mas os poetas já faziam isto antes mesmo que a expressão “arranjo musical” estivesse em circulação, e tudo indica que continuarão fazendo.
 

 
 






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