segunda-feira, 21 de novembro de 2022

4885) Primeiras Estórias: "A Benfazeja" (21.11.2022)




É um dos contos mais estranhos da obra de Guimarães Rosa; o décimo-sétimo conto de Primeiras Estórias (1962). 
 
Começa pelo enunciado narrativo. É um conto onde a voz que narra está insistentemente se dirigindo a um possível público, um possível interlocutor coletivo, a quem ele trata de “vocês”. Não há como não lembrar que o enunciado narrativo do Grande Sertão: Veredas é de um narrador que se dirige a um interlocutor único, um “doutor”, um ouvinte culto que o escuta atentamente.
 
Guimarães Rosa é conhecido pela empatia, pela simpatia com que descreve e examina pessoas pobres ou mesmo miseráveis: doidos-de-rua, mendigos, caboclos broncos dos grotões. Uma exceção notável são os “catrumanos” que o bando de Riobaldo encontra no Grande Sertão: Veredas. Criaturas infra, que chegam a parecer sub-humanas (“quadrúmanos”) de tão rudimentares em sua fala, em seu comportamento. Mas em obras como “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile) já se vê uma sucessão de doidos andrajosos e simpáticos, de vagabundos curiosos e inofensivos.
 
Em “A Benfazeja”, no entanto, a dupla de mendigos (que depois se expande em trio, ao ser referido um terceiro personagem) lembra aqueles mendigos sórdidos de filmes de Luís Buñuel, como Viridiana ou Los Olvidados. Mendigos imundos, antipáticos, repelentes, que não despertam a compaixão.   


(Viridiana, de Luís Buñuel) 


A personagem do título é uma mendiga  chamada de Mula-Marmela, que se arrasta pela cidadezinha servindo de guia para um cego, o Retrupé, um cego azedo, buñuelesco, cruel.
 
O homem maligno, com cara de matador de gente. Sobre os trapos, trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem podia. (p. 126)
 
Logo adiante, o narrador nos faz a revelação de que o Retrupé é filho do finado marido dela, o Mumbungo, um sujeito igualmente mau: “célebre-cruel e iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perversias”. E que este tinha sido assassinado pela própria Mula-Marmela.
 
Dessa forma, o conto se coloca em torno dessa trindade de má aparência. Tudo que ele nos revela sobre os três mendigos é negativo. Chega a lembrar em certos momentos o modo como Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, se refere aos jagunços inimigos, os “hermógenes” e os “ricardões”, assim coletivizados, misturados na mesma essência-ruim dos seus líderes.
 
E de parágrafo em parágrafo o autor vai descascando camadas dessa situação desconfortável, revelando motivações subjacentes.
 
O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou? (...) Mas, quando ela matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui respiraram, e bendisseram a Deus. (...) Mas não a recompensaram, a ela, a Mula-Marmela, ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada à amargura, e na muda miséria, pois que eis. (...) A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora – da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam.  (p. 128)
 
Começa a se delinear, assim a razão desse dedo-em-riste do narrador, desse “vocês” com que ele se dirige a alguém – aos habitantes do lugar? Esse tratamento aparentemente respeitoso, do qual ele se serve para apostrofá-los:
 
E vocês não sabem que...
Vocês nunca desconfiaram...
Vejam vocês mesmos...
 
O horror despertado pela Mula-Marmela não é apenas o horror da repulsa pela sujeira e feiura. É um horror mesclado de remorso, por ter ela servido de executante da “obra altissima”, servido de carrasca em nome desse “vocês” sem rosto, eliminando o detestado Mumbungo. (Na França, dava-se ao carrasco oficial da República o título de “Senhor das Altas Obras”). 
 
Aos poucos, o narrador começa a fazer pequenas ressalvas sobre a criatura:
 
Ela cuida dele, guia-o, trata-o como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. (p. 130)
 
Ela mesma o conduz, paciente, às mulheres, e espera-o cá fora, zela para que não o maltratem. (p. 132)
 
Mas, reparando com mais tento, veriam, pelo menos, como ela não é capaz de pegar estouvadamente em alguma coisa, nem deixa de curvar-se para apanhar um caco de vidro no chão da rua, e pô-lo de lado, por perigoso. (p. 131)
 
É uma situação clássica, a da personagem que é desprezada pelo grupo, mas usada por ele quando necessário, para “fazer o serviço sujo”. Referência maior: Bola de Sebo (1880), de Guy de Maupassant.
 
Dessa massa informe de degradação humana o narrador vai extraindo pequenas redenções, pequenos gestos de humanidade que ainda bruxuleiam na mendiga.




Na reta final do desfecho do conto (“no fino do funil”, como diz saborosamente o autor) o cego Retrupé, alucinado por uma raiva sem rosto, puxa a faca, tenta matar a velha, gira desferindo golpes na treva e no vácuo, enquanto ela se mantém afastada. Ele tomba no chão, aos choros: “-- Mãe... mamãe... minha mãe!” Ela recolhe o chapéu caído, coloca-o de volta na cabeça dele, limpa a poeira: “ – Meu filho...”
 
O desfecho é trágico – o cego Retrupé morre durante a noite, com uma crise de falta de ar, e não falta quem na vila afirme que ela o teria estrangulado durante o sono, para ver-se livre dele. Quem pode saber? Mal vista, mal pensada e mal querida, a Mula Marmela vai-se embora dali, no derradeiro parágrafo:
 
E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando – se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela, entanto. (p. 134)
 
É um conto que se destaca na obra de Rosa, pela ambientação persistentemente repulsiva, incômoda, brutal. Mais uma vez, não me vem outro paralelo senão os filmes de Luís Buñuel sobre aquela multidão de aleijados, cegos, leprosos, arrastando-se esfarrapados pelas estradas poeirentas da Espanha ou do México. É a tragédia lumpen, a degradação dos que não têm nada, dos que horrorizam os olhos e malassombram a lembrança, mas onde o narrador (ao contrário dos interlocutores a quem se dirige o tempo inteiro) vê uma chamazinha de empatia e de humanidade.
 


("Mullholland Drive", de 
David Lynch


 





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