quinta-feira, 3 de março de 2022

4799) Os Revenantes, os fantasmas modernos (3.3.2022)




Escrevo de vez em quando sobre fantasmas, não porque acredite neles, mas justamente porque, não acreditando, fico incrível com a persistência desse visionarismo cultural em todos os tempos, em todas as culturas.
 
Na literatura de ficção, a história de fantasmas (ghost story), mesmo sendo tão sujeita a repetições e uso de fórmulas, oferece infinitas possibilidades dramatúrgicas. (Uso “dramaturgia” no sentido mais amplo de “criação de narrativas”; não necessariamente para o teatro.)
 
A principal limitação para a história de fantasmas, pelo meu juízo, é o fato de que a raiz da maioria delas é uma raiz meramente religiosa: a crença de que cada pessoa tem uma alma imortal e que, depois da morte do corpo, essa alma pode ser avistada pelos vivos, comunicar-se com eles, influir no seu comportamento.
 
Nada contra a hipótese religiosa, que é sempre uma fonte suculenta de inspiração. Mas eu tenho interesse especial por histórias de fantasmas onde a “aparição” não é a alma de um penitente em busca de consolo ou vingança, e sim – por exemplo – o resultado de uma fissura entre dois universos paralelos, fazendo com que pessoas de um sejam vistas no outro.
 
Seria uma hipótese mais científica, digamos, embora em termos rigorosamente científicos a existência de universos paralelos esteja tão longe de ser comprovada quanto a da alma imortal.
 
Uma variante que tem se desenvolvido nos anos mais recentes (embora com precedentes históricos um tanto antigões) é a dos revenantes, os retornados, os-que-voltaram. Pessoas oficialmente mortas que, de modo inexplicável, voltam à vida, mantendo características físicas e psicológicas que tinham antes, mantendo a memória de sua vida anterior, e tentando reintegrar-se ao mundo onde foram dados como falecidos.


O exemplo mais atual é o filme francês Les Revenants (2010) de Robin Campillo, que já foi ampliado para série de TV.  Ao ver esse filme, com seus defuntos que voltam à vida intactos, barbeados, limpos, de roupa limpa, mas amnésicos, me veio à mente a trilogia Southern Reach (2014) de Jeff VanderMeer. Comentei aqui essas duas obras:
 
 
Parecem-se um pouco com o clássico de ficção científica Solaris – livro de Stanislaw Lem (1961) e filme de Andrei Tarkovsky (1972).
 
Ali, também, pessoas mortas parecem voltar à vida meio desorientadas, sem lembrar onde estiveram, e sem saber direito o que estão fazendo ali. O protagonista deduz que elas são corpos formados por neutrinos, por influência do planeta Solaris, onde eles se encontram. O planeta acessa as lembranças mais profundas dos astronautas e as “esculpe” em matéria, dando-lhes vida.


No caso mais doloroso, é a esposa do cientista, que se suicidou porque o marido lhe dava pouca atenção. Ela volta agora, linda, jovem, carinhosa, sem saber o que lhe aconteceu, querendo afagos, e o cientista roendo-se em culpa, duplicada agora por esse retorno impossível mas real.
 
Na tradição mística oriental fala-se no conceito de tulpa. Uma tulpa, segundo os tibetanos, é uma réplica de um ser humano produzida pelo pensamento, uma projeção mental que se materializa em carne e osso. Um dos mais entusiasmados investigadores do Oculto, Colin Wilson, em Mysteries (Parte III, cap. 2) fala de pessoas que imaginaram criaturas assim, conseguiram materializá-las, mas depois perderam o controle sobre elas, tendo muito dificuldade para fazê-las desaparecer.



É nessa direção que a série Twin Peaks de David Lynch explora não apenas o reaparecimento de pessoas tidas como mortas mas também a multiplicação de réplicas de uma pessoa específica, como o Agente Cooper (Kyle MacLachlan).


Usos recentes do tema têm sido marcantes nas séries de TV. Katla  (série islandesa, uma temporada, 2021) mostra um povoado próximo a um vulcão em erupção contínua, e o reaparecimento não apenas de pessoas oficialmente mortas e sepultadas, mas de réplicas idênticas a pessoas vivas da região, que de uma hora para outra precisam encarar “clones” de si mesmas, que reivindicam para si os mesmos direitos.


Na literatura brasileira não é difícil encontrar exemplos, como o recente conto de Cristhiano Aguiar, “Lázaro” (em Gótico Nordestino, Alfaguara, 2022), em que os médicos tentam meio às pressas explicar por que razão pessoas mortas de Covid-19 começam a ressuscitar e retornar para a sociedade, que os chama de “lázaros”.

 
Roberto de Sousa Causo, em O Par – Uma Novela Amazônica (São Paulo: Humanitas, 2008), descreve uma Amazônia num futuro próximo, visitada por naves alienígenas e ocupada por forças militares. Um fenômeno estranho, deflagrado pela proximidade dos extraterrestres, faz com que no corpo de alguns indivíduos brotem “caroços” de rápido crescimento que acabam se desprendendo e se transformando em pessoas. No caso do protagonista, a falecida esposa, que passa a fazer-lhe companhia na mata.
 
Estão longe os tempos góticos quando os fantasmas eram silhuetas etéreas, ectoplásmicas, nuvens de brilho luminoso e lunar, produzindo gemidos distantes.
 
Os revenantes, os fantasmas modernos, são feitos de carne e osso, são feitos à imagem e semelhança de si mesmos. Os do filme francês surgem em casa intactos, de roupa limpa e passada (por quem?), corpos inteiros após anos de sepultura (como?).
 
E são materiais, mesmo que não sejam uma escultura de neutrinos como as aparições de Solaris. É como se no tempo de hoje, tempo do hiperrealismo nas fotos, dos vídeos de um milhão de pixels, dos clipezinhos em 5G, da tela-plana digital mostrando rugas e espinhas do âncora, precisássemos de fantasmas à altura desse excesso de realidade.
 
Fantasmas que acabam sendo uma espécie de deep-fake em três dimensões, e mais: com os arquivos de memória do defunto, porque esses revenantes conversam, voltam aos seus quartos, perguntam pela camisa tal, ou pelo livro que estavam lendo, abraçam seus cônjuges que os aceitam com um misto de desejo, saudade, repulsa e desespero.
 
Os fantasmas parecem vir de uma Matrix superposta a este mundo, e causam medo, não porque sejam agressivos ou ameaçadores, longe disso. Causam medo porque diante deles sabemos como são frágeis os nossos conceitos para definir o que é real, e o que não é.  


 
("Les Revenants", 2015)
 





2 comentários:

  1. Engraçado ler esse texto, pq ele me lembrou um livro do inglês China Mievile que imaginou duas cidades sobrepostas. Há um crime do outro lado da calçada, mas o policial investigador precisa passar pela alfândega no centro da cidade para voltar ao mesmo lugar para investigar o ocorrido. Nesse caso a sobreposição é geográfica. Trata do que a gente vê e do não visto, como os pedintes de sinal ou o country club caríssimo que você sabe que dificilmente frequentará.

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  2. Olá, Pedro. Esse livro é extraordinário, e já escrevi sobre ele: https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/10/2680-duas-cidades-numa-so-6102011.html

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