segunda-feira, 9 de agosto de 2021

4732) Ciência Gótica: o Termômetro de Medir Mulher (9.8.2021)



 
Este é o título curioso de um excelente estudo de Terry Castle, The Female Thermometer: 18th Century Culture and the Invention of the Uncanny (Oxford University Press, 1995), que eu tinha começado a ler anos atrás quando estava pesquisando para minha antologia Freud e o Estranho (Casa da Palavra, 2007) e agora peguei de novo até zerar o jogo.
 
Terry Castle é professora na Universidade de Stanford, com livros que têm como foco a literatura inglesa do século 18. Ela afirma, com bons argumentos, que embora Freud só tenha formalizado em 1919 o seu conceito do Estranho (Unheimlich em alemão, Uncanny em inglês) essa idéia estava impregnada na cultura e na literatura inglesa desde muito antes.
 
O século 18 foi um século interessante do ponto de vista da literatura européia. Ainda hoje traduzimos e estudamos no Brasil os franceses, os ingleses, os russos e os alemães do século 19; mas os anos 1700 na Inglaterra foram um momento crucial na criação das técnicas narrativas de onde resultou o romance moderno. Uma defesa bastante consistente dessa idéia está em A Ascensão do Romance (“The Rise of the Novel: Studies in Defoe, Richardson and Fielding”, 1957) de Ian Watt (Companhia das Letras).
 
Por outro lado, é também em grande parte o século da Revolução Industrial, uma época de ciência triunfante não somente por fazer descobertas conceituais, como as de Galileu e Newton, mas descobertas que resultavam em aplicações prática imediatas, como a máquina a vapor.
 
O “Termômetro Feminino” era um gracejo, é claro, e isso não o impede de refletir com clareza o espírito de sua época. Ele foi descrito em 1754 num artigo por Bonnell Thornton, como “uma invenção para medir a exata temperatura das paixões de uma dama.” Consistiria num tubo de vidro cheio de uma mistura composta inclusive pelos “extratos destilados do amor de uma dama”. Aplicado ao corpo de uma mulher, o líquido subiria ou desceria, como ocorre num termômetro, ao longo de uma escala assim redigida:
 
Abandono Despudorado
Galanteria
Comportamento Relaxado
Inocentes Liberdades
Indiscrições
Inviolável Pudor
 
Brincadeiras assim já datavam de mais de meio século, diz a autora, mas passavam agora a receber uma tintura de ciência popular, à medida que o povo em geral se convencia de que instrumentos análogos funcionavam de fato. O microscópio e o termômetro (diz ela) eram dois dos grandes triunfos teóricos e tecnológicos da Nova Ciência. A escala Fahrenheit foi introduzida na Europa em 1717, e depois as escalas Réaumur e Celsius, por volta de 1730-1740. A linguagem dos “instrumentos medidores” estava em voga.


(Termômetros e barômetros, c. 1710)
 
Ela cita (e ilustra) engenhocas análogas como o “Barômetro Espiritual” que flutuava numa escala entre os extremos do PECADO e da GRAÇA. Esta mentalidade se projetava inevitavelmente na literatura: em “O Homem da Areia” (1816-17) de E. T. A. Hoffmann o vilão que atormenta o personagem principal surge durante sua infância como “um vendedor ambulante de barômetros e termômetros”, indicando uma espécie de “ciência gótica” que resultará, mais adiante, no autômato de aparência feminina, Coppélia, pelo qual o protagonista Nathanael irá se apaixonar.
 
Esses instrumentos, que reagiam de forma quase mágica às mudanças observadas na natureza (temperatura, pressão, etc.) demonstravam possuir uma qualidade feminina, passiva, responsiva. Diz Terry Castle:
 
A estranha mobilidade da vida íntima do barômetro era feminina, de início; o novo objeto dava forma cômica às crenças tradicionais a respeito da hipersensibilidade da mulher e suas irracionais “venetas” relativas ao sexo. Mas a presença constante desses objetos na vida cotidiana – com suas respostas dinâmicas aos estímulos do mundo – encorajaram uma universalização da sensibilidade. Barômetros e termômetros externavam, por assim, dizer, o futuro da psique. (pag. 42, trad. BT)


(Terry Castle)

O livro de Terry Castle tem alguns temas centrais mas se divide em capítulos sobre assuntos bem específicos. Um dos mais interessantes é o capítulo 7, “The Carnivalization of Eighteenth-Century English Narrative”. Depois de estudar nos capítulos anteriores os bailes de máscaras, a cultura do travestismo e os personagens literários que se disfarçam usando roupas do sexo oposto, ela faz um reconhecimento geral do terreno literário, comentando as variadas circunstâncias em que a literatura dessa época abordou os bailes de máscaras e bailes de carnaval – “carnaval” compreendido aqui, é claro, no sentido veneziano, europeu.
 
Ela faz um balanço rápido de romances com essa característica; dos títulos citados, os que sei que já foram traduzidos no Brasil são Roxana (1724) de Daniel Defoe; O Vigário de Wakefield (1766) de Oliver Goldsmith; As Aventuras de Tom Jones (1749) de Henry Fielding; Pamela (1740) de Samuel Richardson; Fanny Hill (1748) de John Cleland.
 
Na Inglaterra do século 18, muito mais do que no Brasil, os bailes mascarados serviam como uma espécie de terra-de-ninguém onde a distância entre as classes sociais era contornada, e não só ela: a distância entre nativos e estrangeiros, homens e mulheres, velhos e jovens. A fantasia mascarada era uma espécie de denominador comum a todos.



Segundo a Profa. Castle, o primeiro baile de máscaras público dessa época foi promovido em Londres, no Haymarket, sob a direção do empresário suíço “Conde” John James Heidegger. Um espetáculo noturno, realizado em salões brilhantemente iluminados, aberto a todos que pudessem arcar com o preço do ingresso e da fantasia.
 
Além das clássicas fantasias de máscaras-negras e dominós, fantasias populares nessas ocasiões incluíam trajes estrangeiros exóticos, travestismo, paródias eclesiásticas (de freiras e padres), trajes ocupacionais pitorescos (pastores, leiteiras, etc.), assim como fantasias representando animais, seres sobrenaturais, além de personagens históricos, literários ou alegóricos. (pag. 103)
 
Entre as décadas de 1720 e 1780 esses bailes se tornaram “uma atividade irreprimível da vida pública urbana; não apenas uma diversão popular a mais, mas o próprio emblema da modernidade, a chancela da moda, do espetáculo e da excitação sub-reptícia”. Os bailes promovidos pelo Conde Heidegger atraíam de 700 a mil pessoas nos anos de 1720; anos mais tarde, bailes com venda de convites chegavam a ter dois mil participantes fantasiados.
 
A literatura da época (ela cita numerosas cenas, capítulos dos vários romances) aproveita dramaturgicamente essas ocasiões para intensificar a voltagem melodramática. Seduções, desvirginamentos, adultérios, mal-entendidos, conspirações, tudo acontece durante essas noites ruidosas, iluminadas, musicadas, em que ninguém reconhece ninguém e seja o que Deus quiser.
 
Um recurso dramatúrgico notável é a transformação íntima das pessoas (para além do mero fingimento) quando estão mascaradas e fantasiadas, como se um espírito “de fora” se apossasse delas. O que sem dúvida inspirou Oscar Wilde a dizer, um século depois: “Quer saber quem é uma pessoa, dê-lhe uma máscara, e ela revelará seu rosto verdadeiro.”

 
Castle relaciona essa temática com as teorias da “carnavalização” propostas por Mikhail Bakhtin, e atualmente muito estudadas no meio acadêmico brasileiro, com a obra de Rabelais e de outros autores da Renascença. Ela adverte:
 
O espetáculo popular enfatizava a união, reduzindo a separação; a mudança, predominando sobre as formas fixas e imutáveis; e o caráter eternamente incompleto do ser. Com o desenvolvimento das modernas noções de individualismo, contudo (aquilo que Bakhtin chamava de “o ser completamente atomizado” do racionalismo) essa metafísica popular viu-se superada. Um mundo de indivíduos separados, sem semelhanças e sem conexão dialética uns com os outros, assumiu seu lugar. (...) Enquanto os temas e as imagens do carnaval são essenciais na obra de Rabelais e dos seus contemporâneos, eles se tornaram circunscritos e problemáticos na literatura da época seguinte, o Iluminismo. (pag. 117)
 
Literariamente, sugere Terry Castle, o emprego dessas cenas de carnaval, com a profusão de detalhes, as técnicas de visualização, a multitude de pontos de vista, as identidades imprecisas, o movimento constante, deram aos autores europeus do século seguinte instrumentos para a criação, num patamar mais elevado, das famosas “cenas de multidão” ou de “motins urbanos” que recebe um tratamento mais complexo na obra de autores como Walter Scott, Victor Hugo, Charles Dickens, George Eliot, Gustave Flaubert e Émile Zola.
 
Para o romancista do século 19, diferentemente de seus antecessores no século 18, a transgressão não adota mais o formato de uma diversão inocente ou descontínua. Pode-se sem dúvida indagar se ela não se tornou a preocupação central, auto-consciente, da própria empreitada ficcional. (pág. 118).
 
 
 





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