quarta-feira, 19 de maio de 2021

4705) "Love, Death & Robots": O Gigante Afogado (19.5.2021)




 

Uma das séries de FC mais simpáticas que tem na Netflix é Love, Death & Robots – uma série de animação, em episódios curtos, com histórias bem escolhidas (é uma série no formato “antologia”, com histórias independentes entre si), técnica em geral excelente, e boa variedade de estilos.
 
Entrou há pouco tempo a Temporada 2, e tive uma certa surpresa em ver que a temporada se encerra com a adaptação de um conto famoso de J. G. Ballard, “The Drowned Giant” (1964), adaptado e dirigido por Tim Miller.
 
É a história de um corpo humano gigantesco, que aparece de repente numa praia da costa da Inglaterra. Um homem jovem, morto. Aparentemente normal, não fosse pelo fato de que tem uns quinze metros de altura. O narrador da história é um professor que está fazendo pesquisas na biblioteca local, e narra o acontecido, e tudo que se seguiu – uma história que deixou nele uma marca profunda.
 
A ficção científica de J. G. Ballard é impregnada de uma atitude de espanto silencioso e contido diante de fatos extraordinários. Seus narradores em geral observam mais do que agem, e quando agem é porque são forçados a isso pelos fenômenos espantosos a sua volta. Reagem com preocupação, susto, terror, conforme o caso, mas sua atitude é basicamente de aceitação de um fato consumado.
 
Quando aquele corpo gigantesco vem dar na praia, ninguém (nem no conto, nem no filme) questiona a existência de uma pessoa com aquelas dimensões. A surpresa de todos é rigorosamente a mesma que seria de se esperar caso fosse uma baleia morta. Susto, curiosidade: nenhum questionamento do tipo “mas isto é impossível, é fantástico”.



No conto de Ballard, a presença física do cadáver é esmagadora, é como uma prova de si mesma, que dispensa explicações.
 
O que eu achava fascinante era em parte a escala imensa de suas dimensões, o enorme volume de espaço ocupado por seus braços e pernas, que pareciam confirmar a identidade de meus próprios membros em miniatura, mas, acima de tudo, o mero e categórico fato de sua existência. Não importa o que fosse suscetível de dúvidas em nossa vida: o gigante, morto ou vivo, existia de forma absoluta, proporcionando a nós um vislumbre de um mundo feito de “absolutos” similares, dos quais nós, espectadores ali naquela praia, éramos apenas cópias imperfeitas e pouco significativas.
(trad. BT)
 
Como um Gulliver naufragado, o corpo do gigante vem dar na praia mas já chega morto, indefeso, e nós, em nossa Lilliput, somos capazes de subir nele, fazer molecagens, pixações, pequenas profanações que precedem o desmonte final.
 
Um fluido escuro e salobro minava dos cotos dos membros que tinham sido amputados, manchando a areia branca e os mariscos. Ao caminhar sobre os pedregulhos da praia, notei que uma certa quantidade de piadas, slogans, suásticas e outros sinais tinham sido recortados na pele já cinzenta, como se o início da mutilação daquele colosso imóvel tivesse liberado um fluxo reprimido de rancor. O lobo de uma orelha tinha sido varado por uma estaca pontiaguda de madeira, e uma pequena fogueira tinha sido acesa no centro do peito dele, enegrecendo a pele.
 
A adaptação de Tim Hill é excelente, captando com perfeição o tom do original, com uma animação figurativa sóbria, que produz a necessária impressão de realidade, essencial para o efeito pretendido por Ballard.


Há poucas divergências em relação ao conto. No livro, o corpo aparece vestido com uma espécie de tanga feita de tecido; no filme, está nu. No livro, o ir e vir das ondas mexe com o cadáver, muda sua posição e o faz vir para mais perto da areia; no filme, ele fica encalhado o tempo todo no mesmo ponto. Apenas divergências mínimas.
 
Amputado, desmanchado, o gigante feito em pedaços vai sendo distribuído pela cidade, para empresas que fabricam fertilizantes ou alimento para o gado. Um dos seus ossos vai parar, simbolicamente, na fachada de um “Açougue Ballard’.


 
Love, Death & Robots tem se mostrado uma série de grande virtuosismo técnico e de bom gosto na escolha dos argumentos: vários episódios se baseiam na obra de outros autores muito bons, como Harlan Ellison, Joe Lansdale, Michael Swanwick, Joe Scalzi etc.  Alguns episódios têm um clima infantil, estilo Toy Story, outros são mais adultos. Há uma boa variedade de temas, ambientações, tratamentos visuais, traço, técnicas de animação, lembrando um pouco aquela “estética de revista” de filmes como Heavy Metal. Com episódios curtos, entre 10 e 20 minutos, cada temporada vale como uma boa antologia de contos.
 
O conto de Ballard foi publicado pela primeira vez em sua coletânea The Terminal Beach (1964), e já em 1965 saiu na Playboy norte-americana com o título “Souvenir”. Foi incluído na antologia do Prêmio Nebula, Nebula Award Stories (1965, ed. Damon Knight) e também em The Book of Fantasy (1988), a versão em inglês da famosa Antología de la Literatura Fantástica organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo (não aparece na edição argentina que possuo, e que é bem anterior).  







6 comentários:

  1. Ótima crítica, a história gera encomodo por não responder muitos questionamentos, porém o intuito realmente é esse de trazer a reflexão.

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  2. Muito obrigada ajudou demais a fazer meu trabalho sobre ele

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