Paris no outono. A surpresa de uma rajada de vento frio
no dobrar de uma esquina. Um dia branco de luminosidade onipresente, algumas
folhas arrastadas no chão. O ameaço de chuva me fez calçar o par de botas
usadas que comprei num mercado perto da Porte de Clignancourt, e botar o casaco
impermeável. Neurótico com horários, cheguei ao endereço com quarenta minutos
de antecedência, mas me dominei e fui tomar um café na esquina, olhando de
longe o portão de ferro que dava acesso ao pátio.
Um minuto após a hora aprazada toquei a campainha e ele
me recebeu, trajando pulôver cinza claro, calça escura, sapatos silenciosos. O
olhar era cansado e franco; o sorriso mostrava dentes precários, e a barba e o
bigode lhe davam o aspecto de um Lon Chaney de bom coração. Meio encurvado,
meio cerimonioso, desculpou-se por não falar português, o que não o impediu de,
ao longo da conversa, citar versos inteiros e usar expressões brasileiras,
sempre com propriedade.
Falou no seu castelhano pausado, e algumas vezes, meio
que por distração, num francês de tradutor. (Já observei, não sei se por auto-sugestão,
que os tradutores profissionais falam as línguas que lhes são estrangeiras com
um certo apuro, um certo respeito a cada palavra, como se “ser compreendido”
fosse a prioridade absoluta.)
Sentamo-nos na sala onde duas portas lado a lado
conduziam a uma varanda ampla com gradil. Deduzi que o pátio interno do prédio
ficava do lado do quarto; ali, o balcão dava para a rua dos fundos que ele me
mostrou com gestos largos, apontando a direção do bulevar principal, da estação
de metrô onde saltei, mostrando o prédiozinho antigo onde moravam amigos, e o
toldo do buquinista que costumava visitar.
(Paris)
Serviu um vinho, perguntou de onde eu era, onde morava,
como era minha cidade, mostrou interesse real; conversamos sobre juventude,
leituras de juventude, comparamos décadas. Perguntei-lhe sobre ficção
científica, ele balançou a cabeça, sorrindo.
JC – Eu poderia lhe falar de
Verne e Wells, principalmente o primeiro, que como deve saber é uma referência
constante no que escrevo. Mas creio que a “ciencia-ficción” moderna me atraiu
menos. Há talvez um excesso de detalhismo científico, do qual Verne já bastou
para me cansar. Gosto dele pelo lado imaginativo, pois nos mostra mil planetas,
todos aqui na Terra.
Aqui na França, curiosamente, tem se escrito muito sobre
certos aspectos iniciáticos, ocultistas, de sua obra; seu interesse por
antiguidades, ruínas, lugares secretos, sua paixão pelos criptogramas... Verne
começou como um divulgador científico, um arauto da Era da Razão, mas de certa
forma a Ciência o ultrapassou, o deixou para trás. Creio que hoje ele está mais
próximo de um Lezama Lima, do que de um Arthur C. Clarke ou outros cientistas
que escrevem.
BT – Sim, sempre imaginei que a ficção científica
norte-americana não lhe interessaria muito...
JC – Mas veja, nada há de
preconceito nacionalista quanto a isto, porque como sabes uma das minhas
grandes influências é Edgar Poe, que li muito cedo, e cuja obra em prosa
traduzi. Poe tinha seu lado científico, sem dúvida, seus interesses
astronômicos, mas se há uma ciência que lhe deve muito, em nosso século –
refiro-me ao século 20, claro – é a Psicologia. Existe uma ciência da mente, e
estamos mais atrasados nela do que na ciência das viagens espaciais. O próprio
Freud afirmou que quem descobriu o Inconsciente não foi ele, e sim escritores
como Hoffmann, o próprio Poe...
Veja, não estou aqui defendendo a idéia de que
a ciência deve invadir, catalogar e legislar esses domínios. Creio que sempre
existirá um “mais além” onde nós, escritores, avançaremos com mais leveza e
mais desassombro do que os cientistas. Mas se me identifico pouco com o termo
ficção científica é justamente por isso, porque o que me interessa não é o que
já foi definido pela ciência, o que já foi experimentado, catalogado, e sim o
que está “do lado de lá”, o que nós outros apenas pressentimos, como quem ouve
um ruído profundo e não sabe de onde vem.
BT – Em seu famoso paralelo entre a literatura e o boxe,
o conto precisa ganhar por nocaute, mas o romance pode se dar o luxo de vencer
por pontos. Tenho amigos e amigas a quem o boxe não agrada, provoca-lhes até
uma certa repulsa. Como poderia traduzir isto para essas pessoas?
JC – É claro que me ocorreu
falar do boxe porque faz parte de minha história pessoal, da história dos
homens de minha geração, e mesmo reconhecendo ser um esporte muitas vezes
brutal consigo ver nele um sistema que contém valores positivos. Além disso, tem
uma dinâmica própria; uma relação entre tempo e energia, que foi o que tentei
exprimir nessa comparação.
Mas podemos dizer tudo isso de outra forma. Posso
dizer, por exemplo, que vejo o conto como uma casa, um lar, um espaço fechado e
intenso, que não necessita de alargamento, mas onde tudo converge para si
mesmo, cada objeto que está ali se relaciona a todos os outros, pertence ao
mesmo espírito, o espírito das pessoas que ali habitam. E uma cidade é um
organismo imenso, aberto, que se espalha em direções muitas vezes
imprevisíveis: é assim também o romance, uma forma de escrita aberta, expansiva,
cujo crescimento se dá de maneira mais lenta e por isso mesmo responde às
variações do tempo, responde às mudanças na alma de quem o escreve. Poderia
dizer também, para que digas a alguma de tuas amigas, que um conto é como uma noite
juntos para um casal que acabou de se encontrar, e o romance é como um
casamento.
BT – O conto é sempre um vislumbre, não?
JC – Sim, e volto a usar aqui
uma de minhas imagens favoritas, a imagem da constelação, da junção de
elementos díspares que às vezes nos é dado entrever. O conto curto, como eu o
entendo, é algo como a fotografia, que às vezes registra de forma instantânea
uma harmonia, uma simetria, uma relação entre elementos, algo que existiu
naquele segundo e um segundo depois de ser fotografado não existia mais.
(Bruxelas)
BT –Um dos seus livros de juventude, Divertimento, tornou mais clara para mim uma imagem: seus romances
são escritos sobre o que chamamos “uma turma de amigos”. Mesmo quando há um
protagonista solitário, ou quando há casais amorosos em primeiro plano, a ação
é ocupada por uma turma que convive intelectualmente.
JC – Sim, sempre dei
importância às amizades pessoais e não apenas no sentido, digamos, das
lealdades afetivas, mas da convivência crítica, do aprendizado conjunto da
arte, da literatura, da vida enfim. Não sou um grande extrovertido, sou mais o
tipo solitário. Não me agradam as festas ruidosas com multidões de pessoas, mas
passei belos momentos na companhia de homens e mulheres cujo espírito tinha
afinidade com o meu. Pessoas com quem eu me sentia capaz de dizer os mais
terríveis gracejos, fazer confissões, compartilhar sentimentos profundos.
(Paris)
BT – Vemos isso, mais famosamente, no Jogo da Amarelinha, mas também em O Livro de Manuel, 62: Modelo para Armar, no próprio Divertimento... Talvez em Os
Prêmios...
JC – Não, creio que Os Prêmios ocorre num outro plano, de
pessoas aleatoriamente convocadas pelo Acaso para conviver no ambiente fechado
de um navio. É outro tipo de dinâmica, com algo de confronto entre estranhos.
Mas você tem razão no que se refere a esses pequenos grupos. Em muitos casos
trata-se de exilados noutro país, uma condição que por si mesma os aproxima, os
enclausura num relacionamento mais intenso, os força ao questionamento
político, ao questionamento estético, existencial e tudo o mais.
BT – Com relação ao exílio, ele sempre envolve uma ruptura,
mas em alguns casos, pode ser também um acesso a outras formas de evolução, de
crescimento pessoal...
JC – Sem dúvida, porque, e
isto se aplica a qualquer um, procuramos sempre tirar das novas circunstâncias o
que têm de positivo. Em meu caso, o exílio inicial foi voluntário, ninguém me
expulsou da Argentina, vim morar em Paris por vontade própria.
BT – Sua literatura tanto tem de parisiense quanto de
portenha, não?
JC – Paris foi a cidade que
escolhi para trabalhar e viver, e uma cidade que sempre me deu muito, e que se
tornou o meu ponto de vista para observar o mundo, sem que com isso Buenos Aires
tenha deixado de sê-lo também. Assim, se pode dizer que ganhei dois pontos de
vista, mas sempre insisto em lembrar que toda minha literatura é feita no meu
idioma natal. É com ele que me expresso, e que dialogo.
BT – Quando se tem duas cidades – a cidade de origem e a
cidade onde se mora atualmente – é
forçoso ter esse ponto-de-vista duplo. Muitos, no entanto, devem tê-lo
criticado por ter adquirido esse lado francês.
JC – Sim. Quando se tem duas
cidades, é um pouco como quando se tem duas mulheres diferentes, duas amantes.
Por mais que tu faças por uma, ela sempre vai imaginar que fazes muito mais
pela outra. Cidades são como mulheres, e às vezes são ciumentas.
BT – Por que escolheu Paris? Alguma razão especial?
JC – Não uma “especial”, mas
várias pequenas razões que se foram superpondo. A familiaridade com o idioma,
que eu já lia e falava, inclusive pela influência materna, pois minha mãe
apesar de argentina de nascimento era filha de franceses, poderia inclusive ter
sido uma tradutora, se tivesse vivido num ambiente menos machista e menos
patriarcal.
(Banfield, Buenos Aires)
BT – Pergunto isto porque li alguns depoimentos seus, ou
correspondências, falando de suas primeiras vindas à Europa, idas aos museus,
etc. Lembrou-me um escritor brasileiro, Osman Lins, que quando viajou pela
primeira vez para a Europa estabeleceu para si mesmo um roteiro muito rigoroso
de estudo de Arte, obrigou-se a visitar tais e tais igrejas, tais e tais capelas,
museus, galerias, às vezes indo a uma pequena cidade italiana ou francesa para
admirar uma única obra, um mural... É uma dedicação metódica à arte que minha
geração, pelo menos, não chegou a ter.
JC – Sim, esse tipo de dedicação
era algo muito importante para mim naquela época. A apreciação da arte européia
era o outro lado, por assim dizer, do nosso movimento de independência, de
tentar nos libertar da mentalidade européia, do impulso tão argentino de negar
a América e fingir que éramos europeus exilados.
Paradoxalmente, a arte
européia, a arte renascentista, a música sinfônica, a pintura, a grande poesia,
a grande novela, nos libertavam desses laços puramente políticos, econômicos e
militares que desenharam a colonização do Cone Sul. Há na grande arte européia
– e em toda a grande arte, por suposto – um espírito universalizante que nos
acolhe, a nós latino-americanos, e que diluindo essas fronteiras artificiais nos
mostra que nossa arte portenha pode também empolgar o espírito de um rapaz na
Espanha, de uma moça em Paris, de jovens na Inglaterra ou na Alemanha... Além
da experiência estética em si, creio que era isto que eu procurava, e não só
eu.
É curioso que você cite o exemplo de Osman Lins, um escritor cujo Avalovara é um livro que muito admiro, porque
sinto nele essa mesma pulsação universal e sem dúvida brasileira, porque o
Brasil que ele descreve é um Brasil que, sem conhecer em primeira mão, aceito
como verdadeiro, até quando não o entendo por completo.
O tempo melhora um pouco e Julio sugere que vamos até a
rua ao lado tomar um café com croissants;
dá a entender que é um pequeno ritual seu no dia a dia. Descemos juntos e
cruzamos uma praça, enquanto tento sincronizar meu passo com o das suas pernas
enormes. Na praça uma garotada na faixa de dez anos está brincando. Alguns
correm na direção dele, gritando seu nome; entendo que são filhos de vizinhos seus.
Estão jogando pião, e um deles pede a Julio que mostre algo.
Ele recolhe o pião, prende o cordão no alto, desce-o
perpendicularmente e com habilidade vai enrolando em torno do corpo. Vira-se
para mim.
JC – Conheces o jogo,
certamente.
BT – Sim, joguei muito na minha infância, em Campina
Grande.
JC (sorrindo, forçando o sotaque) – “Campiña Grande”... (Atira
o pião, dá um puxão brusco, o pião gira repicando poeira no chão batido. Ele
mostra o cordão, que agora pende, frouxo, de sua mão:) Alguém precisa
escrever, um dia, “A arte de agarrar o pião pela ponta do fio”.
Devolve o brinquedo aos garotos, vamos tomar em paz nosso café,
num pequeno bistrô onde ele é saudado com simpatia pelo casal idoso atrás do
balcão. Despedimo-nos com um abraço pouco simétrico. Ele volta com seu andar
compassado, cruzando as ruas de uma Paris que não existe mais, ou que existe
menos do que as linhas com que foi contada.
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)
Augusto dos Anjos:
Philip K. Dick:
Agatha Christie: