domingo, 13 de outubro de 2019

4512) Para quem a gente escreve? (13.10.2019)




É uma das perguntas que nos fazem nas entrevistas: “Para quem o senhor escreve?...”

Em geral eu corto o nó górdio dizendo que escrevo para mim mesmo – falo de coisas que me interessam, eu mesmo faço críticas e levanto questões, eu mesmo procuro dar respostas e expor argumentos. E me dou por sortudo quando vejo que tem alguém que acaba lendo e gostando.

Quando a gente está publicando num jornal ou revista de grande circulação, ou para um público muito distante, sempre surge uma dúvida. Deve-se explicar certos conceitos ou não? Deve-se explicar quem foi Fulano, quem foi Sicrano?  Ou basta dizer o nome? Será que os leitores vão saber?

Se eu escrevo um artigo para um público em geral posso dizer algo tipo: “O romance de hoje talvez não precise do excesso de realismo de Flaubert, e aparenta se contentar com menos”.

Imagino que a maioria dos leitores tenha pelo menos uma idéia aproximada de que “Flaubert” é Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, grande romancista francês do século 19.

Mas com um nome menos famoso convém dar pelo menos uma pista: “Por outro lado, ninguém precisa fazer como Wallace e dedicar duas páginas inteiras à descrição de um ambiente”.

Dizer “Wallace” não bastaria, se estou de fato me referindo a David Foster Wallace, o autor de Graça Infinita; hoje, com Google e tudo o mais, a gente pode citar o nome completo e presumir que o leitor realmente interessado pode dar uma busca e satisfazer sua curiosidade, desde que a pista seja suficiente.

Já me reclamaram por escrever referências tipo “o filósofo alemão Nietzsche”, com o argumento de que “todo mundo sabe que Nietzsche foi um filósofo alemão, e explicar essas coisas é paternalismo”. Não acho. Pelo menos no meu público leitor, tem muita gente que não sabe, o que não é nenhum demérito. Eu não sei quem são metade dos autores que meus amigos citam, e não me acho burro por isto.


(Raymond Queneau)

O escritor francês Raymond Queneau pegou a certa altura da vida uma tarefa assombrosa, a de coordenar a Encyclopédie de la Pléiade, uma coleção gigantesca de informações coletadas sobre todas as áreas, ampliando em muito a respeitável tradição de Diderot e d’Alembert, os enciclopedistas do século 18.

Não sei quantos volumes acabaram saindo. O único que tenho é o volume 1 da Histoire des Littératures, que inclui as “Littératures anciennes orientales e orales”. São mais de 40 colaboradores, num volume de 1.700 páginas, fazendo resumos de literaturas nacionais que vão desde a egípcia à bérbere, desde a coreana à bizantina.

A quem se destinavam esses livros?

Num folheto explicativo lançado em 1956 pela Gallimard (editora da Enciclopédia), ele explica ao leitor alguns problemas com que se defrontaram:

Analisemos um por um estes obstáculos. Primeiro, as palavras. Pode ser que um leitor se incomode caso encontre palavras como periélio, anastomose, estrofóide; ou, pelo menos, esta é uma suposição plausível por parte do editor. Por sua vez, o mesmo leitor, o leitor real, reconhecerá de boa vontade que ignora o significado delas. Por outro lado, pode-se supor que ele sabe o significado de paralelepípedo, antibiótico ou radar, mesmo que o conhecimento real que se esconde por trás de cada uma dessas palavras seja com frequência bastante pobre. Onde fica, então, a linha divisória? É muito difícil de determinar. Supõe-se que alguém saiba o significado de hexágono, elétron ou célula; no caso de eclipsóide, mésotron ou gene, já não é tão óbvio; e com símplex, spin ou neotenia já nos afastamos bastante da linguagem comum e corrente.

Por essas e outras não custa nada dar, no correr do texto, pelo menos uma idéia do que a palavra significa naquele momento, até porque pode ser um neologismo, uma palavra de invenção recente, com que o leitor não se deparou ainda.

Uma coisa é falar de ficção científica num fanzine que só é lido pelos aficionados, e outra é republicar o mesmo artigo numa revista de circulação nacional. Claro que é preciso revisar o que foi escrito, e contextualizar muitas informações.

O problema é que muitas vezes qualquer autor se sente numa zona de conforto excessiva, se sente muito à vontade diante do seu público-alvo e acha que não precisa explicar coisa nenhuma.

Um exemplo disso, dessa camaradagem implícita que acaba irritando um leitor casual, eu acabei de ver num artigo de Jonathan Lethem na revista Granta (#86, Summer 2004), “Two or Three Things I Dunno About Cassavetes”.


(John Cassavetes)

Lethem é um escritor que admiro bastante, escreve FC, escreve romance fantástico e “mainstream”. Neste texto, ele analisa o cinema de John Cassavetes, que é mais conhecido como ator (O Bebê de Rosemary, Os Doze Condenados, etc.), mas foi um dos mais importantes diretores do cinema independente dos EUA.

Lethem começa seu artigo descrevendo um casal que entra num cinema-poeira no centro de uma cidade, numa sessão da tarde, num dia de meio da semana, com o cinema quase vazio. O casal senta e assiste o filme. E no segundo parágrafo, Lethem começa a comentar:

Eles acabam de ver um filme de John Cassavetes. Eu diria que não importa muito saber que filme foi, mas eu sei que vocês sabem que não me refiro a um dos filmes ruins dele, um daqueles que a gente evita falar a respeito, aqueles bem do começo ou bem do final  da carreira; ou, isso mesmo, nem sequer aquele que não é grande coisa, aquele que ele escreveu e dirigiu, estrelando sua maior atriz, sua esposa, mas que ele não levou muito a sério, e por falar nisso você também não. O homem e a mulher acabaram de assistir um dos grandes. Você sabe a que filmes eu me refiro, aqueles que mudam sua vida. Um que você jamais esquecerá onde estava quando o viu pela primeira vez ou como foi a sensação de vê-lo, um que fez você ficar pensando “Mas o que diabo foi isto? Preciso ver isto novamente. Quem é esse tal de Cassavetes?” Não, eles assistiram aquele de que tanto tinham ouvido falar – aquele sobre a família, os amigos, os irmãos, os atores, aquele sobre o homem e a mulher. (Trad. BT)

Pois é. Não acho que Lethem deveria ter escrito diferente, o texto é dele; não acho que deveria ter enchido seu parágrafo com asteriscozinhos explicatórios. Ele deve ter do público da Granta uma noção mais veraz do que a minha. Mas esse trecho é um exemplo muito bom de quanto alguém escreve para seus coleguinhas, aquele texto de fã para fã, cheio de piscadelas cúmplices, onde se diz só meias palavras porque do outro lado da folha de papel só tem bons entendedores.

Para quem escrevemos?  Eu diria que cada texto tem um público em mente, e é isso mesmo, tem que ser assim. O que não impede que de vez em quando a gente se equivoque, como quem vai de bermuda e havaianas para um jantar da diretoria da empresa, ou de black-tie para uma arquibancada de futebol.


(Jonathan Lethem)









3 comentários:

  1. Pedro Lira, eu maldo que talvez seja "Faces" ou então "Shadows". Vi esses filmes em sessões de festival ou de cineclube, há mais de 30 anos. Teria que ver de novo...

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  2. Melhor não se preocupar com isso e escrever simplesmente. Nunca saberemos direito quem nos lê. Mas devemos tratá-lo com um máximo de consideração, não subestimar sua inteligência.

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