terça-feira, 1 de março de 2016

4064) "O Santo Sujo" (2.3.2016)



Lendo sobre o Modernismo brasileiro, conheci o nome de Jayme Ovalle como sendo o parceiro musical de Manuel Bandeira na canção famosa “Azulão”, uma pequena peça de melodia dolente e versos nostálgicos, que entrou no repertório de numerosos intérpretes do canto lírico. As leituras se ampliaram, e o nome de Ovalle começou a pipocar por toda parte. Não se encontra por aí um só livro dele, um só disco, mas todo mundo concorda ter sido ele uma espécie de anjo inspirador da boêmia modernista do Rio de Janeiro.

A biografia O Santo Sujo - a vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2008), de Humberto Werneck, tem uma pesquisa cheia de surpresas pitorescas, e a prosa rica e precisa do colunista do Estado de São Paulo. Werneck faz surgir a imagem de Ovalle como um escritor que não precisava de livro, poeta que esnobava poemas, músico para quem as canções eram mero efeito colateral da música, alguém capaz de inspirar a todos mas sempre deixando para depois a grande obra que parecia destinado a criar. Não muita coisa: vinte ou trinta canções líricas, um volume de poesias. Deixou, acima de tudo (como o Almotásim de Borges), seu reflexo nos que o cercavam, e o brilho desse reflexo nos permite imaginar a luz própria da pessoa.

Era grande fazedor de frases. “O câncer é a tristeza das células”, “o chato é o verdadeiro psiquiatra”, “a morte é a única coisa nossa; nosso nascimento, por exemplo, pertence aos nossos pais”. Não era um intelectual, era um intuitivo, místico, cheio de tiradas brilhantes, como um menino que presta atenção a tudo. Rezava muito, chorava com facilidade, apaixonava-se dia sim dia não. Era arquiteto de complicadas teorias estéticas, um terno sedutor de mulheres e um inflamado enfeitiçador de homens.

Era em imitação a Ovalle, diz-se, a mania de Vinicius de Moraes pelos diminutivos: “o poetinha, o uisquinho, o beijinho”. Vinicius foi um que, ainda jovem, se deixou fascinar pela maneira ovalliana de ser e de viver, a qual não impediu o “santo sujo” de ter sido a vida inteira um impecável e assíduo funcionário da Alfândega. Era na madrugada, onde florescem os talentos boêmios, que Ovalle desabrochava nas mesas de bar ou de cabaré, nas reuniões literárias onde era profanamente reverenciado por Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Aníbal Machado, Di Cavalcanti, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos... A lista é longa e cobre várias décadas. Um desses amigos, Dante Milano, assim o descreveu: “Tudo o que pretendia fazer era prodigioso, mas não se dava ao trabalho de realizar. Não podia, não havia tempo. Cada dia para ele era um novo dia diferente, cada noite era outra noite; um momento para ele era uma existência total”.




2 comentários:

  1. Lembra um pouco a história de Carlos Dias Fernandes, cuja vida e o fascínio que exerceu sobre os amigos e inimigos, é bem maior que a obra que deixou.

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  2. Já comentei aqui o romance dele, "Fretana". Meu pai sabia de cor "O Adeus de Pilatos", um belo poema. Mas pelas histórias que eu vi o personagem CDF era mesmo maior que a obra.

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