sábado, 21 de junho de 2014

3531) Tradução pessoal (21.6.2014)



Um tradutor de verdade é um homem preso.  Ele está preso a duas bolas-de-ferro-com-correntes que nem Janis Joplin seria capaz de arrastar. Em primeiro lugar, está preso à aceitação da existência de algum tipo de pacto supervisionador de tudo que ele irá colocar no papel. Pra ser mais exato, o tradutor é um homem preso a dois pactos.

O primeiro pacto é com o autor: “Prometo dar o meu sangue para que o leitor do seu livro em português tenha uma experiência estética que se equivalha à experiência dos que o leram no original; e que essas duas experiências distantes tenham tantos pontos de semelhança que dois leitores de duas versões possam conversar entre si uma tarde inteira e trocar impressões sem lembrar que leram livros diferentes, em línguas diferentes.” O segundo pacto é com o leitor, e é um pacto que pode ser, de um jeito meio irreverente, reproduzido como: “Comerás um gato, mas com um sabor-artificial-de-lebre no capricho.” Porque mesmo a melhor tradução não é a real coisa. a coisa-em-si.

O tradutor se resigna a vir atrás, a ser o “second best” , a ser o “quase-perfeito”, a tentar (tentar! conseguir é outra façanha!) acompanhar o original como a sombra acompanha um corpo em movimento. Isso é o que toda tradução tenta.  É possível? Não há como (estatisticamente) a frase brasileira acompanhar a métrica da frase inglesa, mas existe uma sensação mais ampla de ritmo, de arcos de ascensão, pico e descenso.  Dependendo do autor (porque há muitos onde essa precaução, infelizmente, é desnecessária) é preciso prestar atenção à sua música, tanto quanto ao seu sentido. Há uma certa música, nem que seja na sucessão de estruturas rítmicas bem amplas, recorrentes. E os breques, o muro de pedra.

Numa entrevista, Garcia Márquez diz mais ou menos que é preciso primeiro encontrar e depois manter a voz narrativa daquela história, e que muitas coisas que são ditas não têm grande importância factual, estão ali apenas para manter o ritmo hipnótico do tom e da cadência da voz que foi escolhida.

Esta é mais uma dificuldade para o leitor, e para o tradutor, que é leitor ao quadrado. Encontrar uma voz equivalente; mas equivalente exatamente a quê?  Se alguém for retraduzir Cem Anos de Solidão daqui a cem anos, em chinês, o que conseguirá passar para o lado de lá?  Talvez a saga e a tragédia dos Buendía passe, mas quem era aquela voz que contava tudo?  Será mantida no mesmo grau de distanciamento e intimidade?  Como reproduzir em chinês as mesmas nuances de entonação, de preferência vocabular, de rudezas gramaticais?  Dizer tudo o que foi dito, e dar a impressão de que o está dizendo pela primeira vez.


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