sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

3098) Os zumbis e os canibais (1.2.2013)




Desde o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, na época da Semana de Arte Moderna de 1922, essa história de antropofagia passou a ser o argumento preferido de quem lida com a invasão da cultura estrangeira no Brasil.  

O que dizia Oswald, em síntese? Que a melhor maneira de combater o inimigo não é apenas matando-o, mas matando-o e comendo-o.  Não basta destruir; é preciso assimilar, pois NÃO podemos permitir que o inimigo desapareça sem nos deixar uma herança, um ganho substancial.  

Essa metáfora veio recebendo diferentes leituras ao longo do século 20, e duas que me tocaram de perto foram a do Tropicalismo nos anos 1960 e a do Movimento Antropofágico da FC (formulado por Ivan Carlos Regina) nos anos 1980.
O problema é que quando dizemos que é preciso devorar e digerir a invasão estrangeira há quem imagine que a gente deva se transformar em consumidores compulsivos dela, engolindo tudo que o mercado nos oferece nas livrarias, nos cinemas, na TV. 

Nada disso, amigos! Um canibal (leiam Hans Staden!) é o sujeito mais gastrônomo que existe. É mais exigente do que enólogo principiante, e mais detalhista do que gaúcho servindo churrasco para estrangeiros. Quem devora indiscriminadamente o que lhe chega ao alcance das mãos não é o canibal. É o zumbi.
O canibal escolhe o que vai devorar; não é qualquer prisioneiro que cumpre os requisitos. Os índios não devoravam os covardes, os que fugiam da batalha, os que se acovardavam e perdiam o amor próprio. Faziam prisioneiros e os cultivavam durante semanas ou meses, não apenas para um ritual de engorda, mas também como uma preparação espiritual para o pseudo-combate (pois a execução implicava muitas vezes num desafio verbal entre o carrasco e o condenado). 

Devorar o inimigo era absorver suas qualidades, sua bravura, seu caráter. Só se comia alguém a quem se admirava. Dizem que uma das coisas que salvaram a vida de Hans Staden foi o fato de que ele de vez em quando chorava e pedia para não ser morto.
O canibal escolhe, vai em busca, captura, guarda, devora ritualmente, faz uma festa. Sabe exatamente quem está devorando, e por quê. Rejeita uma vítima, se ela não lhe for apetecível.  

Ou seja: ao “antropofagizarmos” o rock estrangeiro, a ópera, a arte de vanguarda, a ficção científica ou o que quer que seja, temos que ser igualmente exigentes, críticos, “gourmets”, porque o canibal é assim. 

Já o zumbi é o contrário disso, ele mastiga e engole o que lhe aparecer pela frente. É o fã eufórico e ciumento, consumidor compulsivo, o imitador feliz, o re-comprador eterno, o acumulador de bugigangas, o mastigador de best-sellers. Canibal é outra coisa.











Um comentário:

  1. Nesse sentido a cultura japonesa é também dada ao canibalismo: se apropria, transforma, adapta, para continuar sendo "japonesa". É claro que quando se pensa no assim chamado J-Pop, se percebe que lá também proliferam felizes, os zumbis. Penso nos zumbis, também, toda vez que vejo uma senhora, aqui no Brasil, hemisfério sul, se dizendo Wicca e praticando rituais sazonais que só fazem sentido no contexto do hemisfério norte com suas estações do ano invertidas.

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