sexta-feira, 2 de novembro de 2012

3020) O ator Prendergast (2.11.2012)




(W. T. Benda)


Dizer que William Prendergast foi o maior ator britânico de sua geração é um exagero, pois ele brilhou nos palcos londrinos na época de gigantes como Henry Irving.  Não obstante, seu carisma e sua dedicação ao ofício o tornaram uma lenda dos palcos desde sua demolidora estréia em 1870, numa montagem anticonvencional de “The Golem” de Buckhardt, até seu misterioso e controvertido desaparecimento na Suíça, no inverno de 1891.

O detetive Sherlock Holmes, em pessoa, tentou reconstituir o trajeto percorrido por ele em seus últimos dias, mas, premido por outros compromissos, abandonou a investigação. O que ninguém sabe é que na véspera de anunciar esse abandono, Holmes, hospedado no hotel Böcklin, em Meiringen, recebeu um chamado para que batesse à porta da suíte 603, onde foi recebido por uma jovem loura, frágil, com sotaque italiano, diante de uma mesa posta para o chá.

“Desculpe-me este incômodo, Mr. Homes”, disse ela, “mas tenho uma mensagem urgente para lhe transmitir. Sua experiência profissional, por certo, já exigiu que o sr. se disfarçasse em outras pessoas, não é verdade?”. Holmes assentiu, e ela continuou: “A arte do ator consiste em dar tudo de si para a criação de um personagem. É um fenômeno que prova o domínio do espírito sobre a matéria, a força que tem a mente humana para se impor ao corpo que a mantém”. Pousando a xícara, a moça prosseguiu: “Desde o início da minha carreira, decidi que todas as minhas energias seriam dedicadas a dar forma viva e veraz aos personagens que me cabia recriar. Dar-lhes não apenas corpo e alma, mas substância, matéria”.

Holmes ergueu os olhos. Diante dele, a silhueta esguia da jovem ia sendo substituída por um vulto encorpado, e o vestido branco perdia o brilho e a forma, enovelava-se sobre si mesmo em algo como um terno marrom. O detetive fitou então o rosto quadrado de William Prendergast, viu-lhe a pele suada, os olhos febris. “O problema”, disse a voz profunda do ator, “é que esse processo, uma vez desencadeado, não se pode deter. Os personagens brotam de dentro, não de fora, e uma vez aberta a porteira, nada os contém”. A visão de Holmes se turvou diante daquela sucessão de vultos que surgiam à sua frente e se fundiam no próximo: um padre irlandês, um cavaleiro medieval, um ilhéu de Samoa, uma governanta, um adolescente atormentado...

Na portaria do hotel, os atendentes não perceberam que o detetive Sherlock Holmes saiu duas vezes seguidas naquela tarde. Na primeira, com toda sua bagagem, seguiu rumo à estação ferroviária, e duas horas depois saiu novamente, chamou um tílburi e ordenou que seguisse para o desfiladeiro de Reichenbach Falls.



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