domingo, 6 de novembro de 2011

2706) Trabalhar de graça (5.11.2011)




(FunkyPix2)

Existe em alguns artistas um pudor de cobrar pelo próprio trabalho. De certa forma eles se acham privilegiados por serem convidados a fazer algo que lhes dá prazer. Cobrar por aquilo é introduzir no processo um elemento de comércio, frieza, cálculo. Como se alguém dissesse: “Teu prazer é insuficiente, é sem substância, talvez seja falso. Precisas lastreá-lo com dinheiro para que ele não se desmanche no ar”. Ele se julga pago pela mera alegria de ser lido, de ser escutado, de produzir no rosto alheio aquela expressão de deslumbramento e respeito.

Há quem se envergonhe de cobrar porque o “trabalho” em questão não é trabalho nenhum, esforço nenhum. No seu modo de ver as coisas, o pagamento de um trabalho não é a aquisição do produto final, é um ressarcimento pelo esforço e pelo sofrimento de quem produz. E ele se acha “um aproveitador” se tiver de cobrar para tocar mais uma vez as músicas que já tocou milhares de vezes, ou colocar por escrito idéias que de certo modo já estão prontas e arrumadas em sua mente. Não há esforço algum envolvido, nada que justifique uma remuneração por um “trabalho”.

Outros não cobram por uma questão de altivez aristocrática. Até acham que mereceriam receber; até precisam da grana. Mas cobrar os empobrece aos seus próprios olhos: “Sou alguém que precisa de dinheiro”. Trabalhar de graça, por outro lado, os transforma em generosos doadores de si mesmos, em alguém que tem tanto que não se furta a distribuir. São como aquelas tribos que, não satisfeitas de oferecerem banquetes, sentem-na na obrigação de destruir comida, para provarem que não são uns mortos-de-fome.

Há os que não cobram por mera desinformação. Cresceram num meio onde a idéia do trabalho artístico gratuito foi vigorosamente implantada. A arte é sagrada, é pura, não se suja com dinheiro. Viraram artistas por uma vocação sincera, mas sempre à sombra de outra ocupação. Quando ouvem alguém dizer que cobra para dar uma palestra, ficam constrangidos e sem parâmetros. É como o sujeito estar azarando uma garota numa festa e ela dizer: “Quer ir pra cama comigo? É tanto.”

Alguns não cobram por esperteza e tática de sobrevivência, porque dando-se de graça tornam-se credores, e já sabem exatamente como cobrarão a contrapartida num momento futuro. Seu comércio não é o do dinheiro, é o da cortesia, mas é de uma contabilidade implacável. Uma dívida não saldada fará o devedor desprevenido pagar em dobro o que não imaginava estar devendo. Generosidade e gratidão são transformadas nas regras de um câmbio que lida com sentimentos em vez de cifras, mas cuja execução contábil é igualmente precisa e sem perdão.





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