sexta-feira, 27 de agosto de 2010

2330)A origem dos sonhos (26.8.2010)



O filme de Christopher Nolan “ Origem tem sido elogiado e criticado pelas razões erradas. Elogiam-no pelos efeitos especiais, o que é o mesmo que elogiar uma mulher pela maquilagem. Elogiam pelas cenas de ação, que provavelmente nem foi Nolan que dirigiu – os estúdios têm diretores de segunda unidade: Diretor de Perseguição de Automóveis, Diretor de Perseguição A Pé Por um Mercado Oriental, etc. Profissionais que todo mês dirigem a mesma cena, com equipe diferente, para um filme diferente – e só quem percebe isso sou eu? Elogiam, finalmente, o modo como o filme transporta para a tela o mundo dos sonhos. E isso é algo que ele só consegue em pequenos trechos (embora, nesses momentos, o faça com brilhantismo).

O grande momento do filme é quando Leonardo DiCaprio e Ellen Page estão sentados na calçada de um café parisiense e de repente os prédios em volta começam a explodir; ela se assusta, e ele diz: “Calma. Estamos sonhando.” Quando Ellen assimila o fato de que aquilo é um sonho controlado, e começa a dobrar a cidade de Paris sobre si própria, estamos diante de um grande momento do cinema contemporâneo, digno da fantasia gráfica do Little Nemo de Winsor McKay ou de uma gravura de M. C. Escher. Estamos num mundo visual-narrativo que se comporta de acordo com as leis do mundo onírico. Não porque apareçam elefantes cor-de-rosa, mas porque ali a mente pode provocar mudanças instantâneas, absurdas, rompendo regras de tempo e de espaço. Isso é uma das primeiras coisas em que o mundo dos sonhos é diferente deste.

O filme de Nolan tem uma idéia audaciosa e uma narrativa controladíssima. Ele passa do plano real para três planos sucessivos de sonhos, e eu, que geralmente me perco em coisas assim, me mantive o tempo inteiro consciente do que estava se passando nos demais níveis. O problema é que esse excesso de controle faz com que o filme acabe sendo menos onírico, porque sonho é descontrole, é não sabermos onde estamos nem quem sou nem quando é. Neste aspecto, os cineastas que produziram filme de sintaxe onírica contam-se nos dedos: Luís Buñuel, Raul Ruiz, David Lynch, Peter Greenaway, Jeunet & Caro, alguns momentos dos irmãos Coen, de David Cronenberg, de Fellini, de Alain Resnais, e certamente de mais uma dúzia que desconheço.

Falei em Escher; assim como nas gravuras de Escher somos forçados a aceitar duas realidades visuais contraditórias, em A Origem somos forçados a aceitar duas realidades narrativas contraditórias, a narrativa do sonho, que é randômica e fraturada, e a narrativa do filme de Hollywood, que é articulada, cheia de conexões de causa e efeito, e converge toda para um desfecho plausível. Ora, Hollywood, que já foi chamada “a usina de sonhos”, produz tudo, menos sonhos. Produz fantasias, que são criações conscientes, inspiradas por um desejo. Um sonho é diferente. É um dilaceramento caótico de desejos e repulsas, e seus cacos são imagens que não têm a menor intenção de fazer sentido.

6 comentários:

  1. BT, eu não gostei muito deste filme e não sabia muito bem dizer por que. Mas vc conseguiu traduzir isto muito bem... O controle sobre o roteiro, na ilusão, talvez, de não deixar ninguém se perder na trama tridimensional do inconsciente" quebra o onirismo da coisa toda. Na verdade alguns desagrados saltam aos olhos, de cara, e são comuns na Hollywood contemporanea, esta profusão de tiros e cenas de ação. Isso transforma a maioria dos filmes em sessões da tarde da Globo, em época de férias. Confesso que também vi nele coisas que me fascinaram como a cena que vc descreve de Paris se dobrando sob o poder da mente sonhadora de Ellen Page e a escada paradoxal de Escher. Lá no meio me lembrei de uma ordem de Don Juan a Castaneda sobre controle de sonhos que cheguei a conseguir praticar nos meu anos de estudo sério e até iniciático de Ocultismo e afins - tive-os, sim, na faixa dos 30 e poucos, época da vida em que, como dizia Tim Maia, todo homem é dado a misticismos - que era de olhar para as palams das próprias mãos quando você começasse a perder o controle do sonho, ou seja, quando ele quisesse mudar de cena/tema/etc e vc quisesse manter. (lembra disso? acho que tá no Viagem a Ixtlan) Olha, até que funcionou, viu...

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  2. Erratinha
    "Trama tridimensional de inconscientes" = esse negócio de sonhos em 3 camadas.

    COMO essa profusão de tiros e cenas de açao....

    Onde disse palams eram "palmas".

    Jf

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  3. Juca, eu gostei do filme, com essas ressalvas que fiz; acho que enfatizei as críticas por causa do entusiasmo que vi nas pessoas que saíam da sessão. Nesses casos eu sempre procuro ir colocando coisas no outro prato da balança. Mas, pra pegar teu exemplo, acho que podia ter menos "Duro de Matar" e mais Castañeda.

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  4. Discordo de vocês, amigos.
    No filme de Nolan, a estranheza do sonho seria facilmente detectada e os propósitos da turma de Cobb não poderiam ser conquistados. O personagem de Leonardo di Caprio explica isso na cena de Paris dobrada.
    A intenção era fugir o máximo do onírico e contruir um simulacro de realidade onde fosse fácil extrair (ou colocar) informações.
    A mente de Fisher, alvo do ataque, já era militarizada. Como filho de um dos principais executivos da multinacional citada no filme, era natural que ele recebesse treinamento para investidas nos sonhos. Daí o lado "Duro de Matar" que ficou ducaraio.

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  5. Beleza, Silvio, seu argumento está cheio de razão, quanto à dinâmica narrativa interna do filme. Minha queixa é apenas -- talvez injustamente -- de que eu gostaria de ver a mesma premissa resultando num filme diferente, com mais delírios mentais e menos perseguiçõoes armadas. Gosto pessoal.

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  6. Beleza, Silvio, seu argumento está cheio de razão, quanto à dinâmica narrativa interna do filme. Minha queixa é apenas -- talvez injustamente -- de que eu gostaria de ver a mesma premissa resultando num filme diferente, com mais delírios mentais e menos perseguiçõoes armadas. Gosto pessoal.

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