domingo, 16 de maio de 2010

2046) David Lynch (29.9.2009)



Tempos atrás, juntei-me a uma fila de mais de cem pessoas, numa livraria do Rio de Janeiro, para pegar um autógrafo do cineasta David Lynch, que esteve no Brasil lançando seu livro mais recente. Comprei o livro, e meu filho pegou seu autógrafo no DVD de Eraserhead, o primeiro filme (e certamente o mais bizarro) da obra do diretor de O Homem Elefante, Twin Peaks, Veludo Azul e Cidade dos Sonhos. Lynch veio aqui para lançar um livro de anotações e reflexões sobre meditação transcendental, que ele pratica há décadas. O livro é dedicado ao Maharishi Mayeshi Yogi, acho que o mesmo que passou um tempo levitando com os Beatles no auge do sucesso.

David Lynch é o Luís Buñuel dos EUA. Por mais diferentes que sejam um do outro (e nem sei se o americano gosta dos filmes do espanhol) os dois têm em comum o gosto pelo imprevisível, pelo inexplicável. Não há nem pode haver nenhuma explicação racional que “feche a conta” de um filme de Lynch ou de Don Luís. Eles sempre deixam resto. Sempre deixam uma margem de obscuridade que nenhuma razão ilumina. E nessa margem de obscuridade estão ocultos conceitos centrais sobre a história narrada; o fato de que não podemos explicá-los faz com que qualquer explicação sobre a história esteja eternamente dependendo dessas variáveis que não conseguimos definir.

Os filmes de Lynch são mórbidos e doentios. E no entanto eles me parecem menos mórbidos e doentios do que os filmes estrelados por Chuck Norris e Steven Seagal. Por que? Os filmes destes últimos se baseiam numa equação muito simples: o mundo é um lugar selvagem, violento, cheio de gente má, e a única maneira de sobreviver nele é ser mais selvagem, mais violento e mais mau do que os que nos ameaçam. (Preciso citar Augusto dos Anjos, mais uma vez?) Já os filmes de Lynch nos dizem que o mundo é um lugar estranho, desagradável, inexplicável; e que o ser humano é uma espécie de trapo pensante flutuando na correnteza de um esgoto e fazendo gestos incompreensíveis para os ratos que o observam das margens.

Lynch é uma espécie de Samuel Beckett “pop”. Existe nos dois a mesma repulsa instintiva pelo corpo humano, pelo sexo, pelas funções fisiológicas, pelo mero fato de sermos feitos de carne e termos as necessidades da carne. Beckett explora essa visão-do-mundo num contexto de vanguarda e de máxima rarefação da linguagem, desbastando-a até o minimalismo. Lynch explora esses temas no contexto tecno-barroco do cinema comercial americano; em vez de limar a linguagem até não deixar quase nada, ele a destrói de dentro ao multiplicá-la, porque multiplica os curto-circuitos narrativos, deixando desnorteado o espectador de filmes como “A estrada perdida”. Beckett acha a vida humana absurda e isto o faz sofrer, o reduz ao silêncio. Lynch também acha, mas isto de certa forma o diverte. Em vez de reduzir-se ao silêncio, ele dinamita o discurso pelo lado de dentro, e faz um cinema americano que é a negação do cinema americano.

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