quinta-feira, 13 de maio de 2010

2036) A recepção fragmentada (17.9.2009)




Houve um tempo em que se esperava que a gente fruísse uma obra do começo ao fim (livro, filme, etc.). Hoje, experimentamos fragmentos das obras e nos damos por satisfeitos. 

Isso é consequência da multiplicidade de canais à nossa disposição (livros, jornais, revistas, TV, cinema, TV a cabo, Internet, celular, I-pod, e-book, etc.). Cada um deles reclama minutos preciosos de nossa atenção, faz com que a gente tenha que subdividir o tempo, dedicando um pouquinho dele a cada coisa que nos atrai, mas sem dedicação total a nenhuma delas.

Houve um tempo em que para ver um filme era preciso sair de casa, comprar um ingresso, sentar numa sala durante duas horas e ver o filme do começo ao fim. Com a TV, locadoras, YouTube e assim por diante, está cada vez mais fácil ver um pedacinho de um filme e tchau. Ou ver um trecho, achar que o filme não vale a pena, e parar por ali. Ou ver somente uma cena por curiosidade, porque alguém falou sobre ela, e a gente não quer ver o filme inteiro. Ou então ver pedaços do filme por acaso ou falta de tempo. 

Com a TV a cabo, que repete filmes com regularidade, há muitos de filmes dos quais já vi o começo várias vezes e nunca vi o fim, ou vice-versa. Chego num canal por acaso, o filme está passando, eu vejo mais um trecho, mas aí preciso desligar por causa de um compromisso... 

Tem filmes que eu já “vi” umas dez vezes sem nunca assisti-lo por inteiro. Isto é uma experiência de recepção estética que, no tempo do ingresso e do cinema, praticamente não existia.

Isto ocorre com os livros, e, com certa frequência, com o pessoal mais jovem, de 25 anos para baixo. Para eles, a leitura de um livro é um ato menos sacramental do que para minha geração. Vejo muita gente comentando um capítulo específico de um livro e admitindo que leram somente esse capítulo, porque alguém lhes chamou a atenção para ele. Por alguma razão, não se sentem obrigados a ler o livro inteiro. 

Para esses leitores, ler um livro do começo ao fim é desnecessário, quando podem simplesmente ler os “Melhores Momentos”. Quem sou eu para falar? Venho lendo assim o Ulisses de Joyce há décadas. Nunca o li por inteiro, mas há capítulos que já li 15 vezes.

Essa “estética da recepção fragmentada” faz com que seja possível baixar de um CD apenas as faixas que nos interessam. Ir ao YouTube, onde longas-metragens são postados em 10 segmentos, e ver apenas o segmento que queremos (um duelo de pistola em El Topo, um diálogo de Masculino Feminino, a cena da Torre de Babel em Metropolis...). 

Essa estética é prima da estética do “sampler”, da reutilização de pequenos trechos de obras alheias em obras próprias. Ela denuncia de um lado que há pouco tempo para ver tanta coisa, e por outro lado propõe desconstruir o que existe à nossa volta e retirar dali apenas os pedaços que nos interessam. 

Obras se multiplicam, o tempo escasseia: precisamos de uma estética que não tenha pena de cortar um dedo para levar um anel.






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