sábado, 24 de abril de 2010

1951) A minha e a sua religião (10.6.2009)



(H. L. Mencken)

O que fazer se um amigo nosso acredita, sincera e profundamente, que o planeta Terra repousa nas costas de uma tartaruga gigante, que por sua vez está sobre outra tartaruga maior ainda, e esta sobre outra ainda maior, e assim por diante, até o infinito? Claro que ninguém deixa barato uma crença como esta. A gente pigarreia, passa a mão nos cabelos, faz uma tentativa: “Olha, Fulano, a hipótese é de fato fascinante, mas você não acha que haveria, digamos, uma maneira mais simples de explicar as coisas, uma teoria com menos jeitão de réptil?...” Por mais que a gente tenha boa vontade, às vezes não adianta. Depois de anos de discussão, a intensidade da crença do nosso amigo está na proporção inversa à verossimilhança dos seus argumentos. Nesses casos a gente diz: “Tudo bem. Vamos falar de outra coisa. Que time você torce?...”

Não estaria fazendo mais do que levar em conta a frase famosa do escritor H. L. Mencken, o qual disse certa vez: “Temos que respeitar a religião de outro indivíduo, mas apenas no mesmo sentido em que respeitamos sua teoria de que sua esposa é bonita e seus filhos são inteligentes”. Não conheço comparação melhor. Religião pertence a esse mesmo território fluido e subjetivo. Não estou aqui questionando a existência de Deus, dos orixás nem das tartarugas. Refiro-me à experiência íntima de cada um, ao sentimento que ele associa à palavras “religião”, “fé”, etc. Admitindo a existência de Deus, é sensato supor que a experiência de Deus vivida por cada um de nós, mesmo a revelação do Deus da Bíblia a cada um dos seus profetas, é uma experiência única. Em seu conjunto, são todas irredutíveis entre si, incomparáveis. Imaginar de outra maneira seria igualar cada um desses profetas ao próprio Deus.

Um pouco dessa convicção subsiste na expressão surrada de que “religião é coisa de foro íntimo”. Esse foro íntimo é a alma privada de cada um, que não se comunica com as almas dos outros mas pode – admitindo-se a premissa da existência de Deus – ser acessada pela Divindade. Deus + São Pedro é uma coisa; Deus + São Paulo é outra. Cada um de nós é um grãozinho de menos-nada, mas, somado a Deus, faz uma diferençazinha que nos resgata do zero.

Dessa maneira cada um de nós tem uma experiência do Divino que se parece consigo mesmo. Revertendo a frase clássica, podemos dizer que cada homem faz o seu Deus à sua própria imagem e semelhança. Não um Deus “parecido comigo”, mas um Deus composto das coisas que sei e que sinto, das coisas que sou capaz de imaginar e de pressentir, que sou capaz de entender , de reverenciar. O Deus de Santo Agostinho e o de São Tomás de Aquino era certamente um Deus intelectual, filosofante, argumentador. O de São Francisco de Assis era cheio de emoção, de despojamento e da alegria das pequenas coisas. Todo Deus é uma espécie de espelho. Teu Deus é aquele que te define, que te cria, que determina quem és.

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